De expulsões em palcos a Miss Minas Gerais: conheça a história da drag queen Nicole Ádalla

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Por João Paulo Silva Publicado em 22/04/2021, 17:35 - Atualizado em 23/04/2021, 09:17
Foto – Nicole posa para o fotógrafo e jornalista Domingos Gonzaga, no centro histórico de Ouro Preto. Siga no Google News

João Gabriel Diniz nasceu em um 10 dezembro quente e chuvoso de 1988, pesando 3,600 kg e medindo 55 cm, em Contagem, Região Metropolitana de Belo Horizonte (MG). Já Nicole Ádalla não teve um parto convencional. O seu cordão umbilical não foi cortado, ela não foi amamentada nos primeiros meses de vida e muito menos teve de aprender a falar. O que ambas têm em comum, além de viverem em uma sociedade que ainda não aprendeu a acalantar as diferenças? João e Nicole são, em tese, a mesma pessoa. Ao mesmo tempo, cada uma tem a sua personalidade própria. A segunda ganhou vida após anos de luta para, finalmente, desabrochar e vir ao mundo para se expressar como bem entendesse.

Nicole Ádalla é uma drag queen, ou seja, uma artista que usa roupas e elementos como peruca, maquiagem e artigos cênicos para fins de entretenimento. João explica que ser uma drag, não tem nada a ver com identidade de gênero ou orientação sexual. “Qualquer pessoa, seja ela gay, hétero, bissexual ou transgênera pode ser uma drag”.

Foto - A drag queen Nicole Ádalla. Crédito - Domingos Gonzaga.

Alguns estudiosos defendem que a palavra provém do polari, um dialeto inglês do século 19, que mais tarde passou a ser usada pela comunidade LGBTQIA+. Há também quem diga que drag é um acrônimo para "dressed as a girl" ("vestido como uma garota”, em tradução literal), supostamente presente em roteiros de teatro antigos, para orientar o diretor da peça.

Nestes tempos em que as questões de gênero ganham força no país (e no mundo), muitos criticam o direito das pessoas que não se enquadram no binarismo “masculino x feminino” de serem chamadas como se sentem bem. Embora muitos não saibam, existe até um manual que orienta jornalistas sobre como tratar temas da população LGBTQIA+. Sobre a questão, Diniz explica que as drags devem ser tratadas no feminino. “Você pode me chamar de João, normalmente, mas quando você se referir à Nicole, a forma de tratamento é no feminino”.

João também conta que desde muito pequeno gostava de apresentações em palcos, tudo que envolvia o mundo das artes e que levou muito tempo (e dinheiro) para conceber Nicole. É ele quem, sozinho, sustenta a casa onde mora com sua mãe que já sofreu dois AVCs (Acidente Vascular Cerebral).

João sempre quis estar no meio artística e na infância organiza pequenos shows em casa. Crédito - Arquivo pessoal

“O sonho de atuar surgiu ainda na infância, mas, obviamente, naquela época, eu não tinha a menor noção do que era uma drag queen. Com isso, eu apenas afirmo que desde muito cedo, sempre gostei bastante de fazer shows caseiros e queria estar em cima do palco. Eu montava toda uma apresentação, depois chamava meus parentes para assistir. Ainda não era um show feminino, eu ensaiava os meus primos, a gente dançava, cantava, atuava...”  

A primeira oportunidade para atuar profissionalmente no palco surgiu, como quase tudo na vida de João Gabriel, em forma de desafio. Um amiga muito próxima era proprietária de uma empresa que promovia festas infantis, mas de última hora, o garoto que faria o papel de Troy, um personagem da série de televisão estadunidense High School Musical, ficou de castigo por ter tirado nota baixa em uma prova. De garçom do empreendimento, da noite para o dia, João se viu no palco.

“Teve um "belo" dia que quem fazia o Troy ficou de castigo por não ter passado em uma prova. Essa minha amiga olhou para mim e disse: João, você tem uma semana para virar o Troy! Eu fiquei passado e morrendo de medo, mas como eu gostava muito da série, já conhecia muito bem o personagem. Após uma semana de ensaio, chegou o dia da apresentação. Era uma festa infantil com muita gente. A atriz que atuava comigo percebeu que eu estava muito pálido e me disse: respira fundo e vai”.

Nesse momento, João conta que se lembrou do antigo sonho de estar no palco e que já era tarde para desistir. Seria tudo ou nada. “Na hora, eu me soltei completamente, fiz o meu show e recebi muitos aplausos”. Desde então, João Gabriel passou a trabalhar de forma fixa nesse grupo por um período de quase cinco anos. “Inclusive, a gente viajava muito apresentando e eu tinha muita dificuldade de largar o personagem e voltar para a vida real”, se diverte.

Diretamente impactado pela pandemia, João perdeu dois empregos na área do comércio de calçados. “Só no ano passado, eu fui demitido duas vezes em razão da crise”.  Mas o jovem não deixou o sonho de lado e logo procurou emprego em uma área na qual nunca havia atuado. “Resolvi partir para uma área que eu considero um pouco mais estável. Estou trabalhando numa indústria que fabrica artigos para confeiteiros, utensílios domésticos e outras coisas”.

De acordo com o jovem, que começou a se montar aos 29 anos (hoje, ele tem 32), a vida de uma drag exige muitas despesas. “Além de ter o gasto da minha casa e o meu gasto particular, ainda tenho os gastos da Nicole. Desde que eu trouxe a Nicole à Luz, raramente comprei alguma coisa para o João”, brinca.

João viu uma drag pela primeira vez em um programa de televisão. Naquele momento, ele se descobriu e disse – "eu quero ser isso!" Mais tarde, ele foi influenciado pela também drag queen e youtuber Rebecca Foxx. “A cada vídeo da Rebecca que eu assistia, a vontade de ser drag só aumentava”. Quando João completou 29 anos, apoiado por uma prima, ele disse para sua mãe que queria realmente ser uma drag queen e não houve relutância. “A primeira vez que me montei, foi em 05 de agosto de 2018, na Parada Gay de Contagem. Quando eu me vi maquiado, senti um arrepio e meus olhos se encheram de água”.

A vida de João é marcada pelo esforço característica daqueles que vão em busca de seus sonhos. Crédito - Arquivo pessoal.

Novamente a luta. João conta que no passado, quando frequentava a cena noturna da capital mineira, chegou a ser impedido de dançar e a ser retirado de palcos por seguranças. Em uma dessas situações, ele enfrentou um segurança e disse – “Um dia vocês ainda vão me ver atuando nesse palco! Ele não me levou a sério e debochou de mim". Dito e feito, o seu primeiro show aconteceu nesse mesma boate. “Um palco que eu tanto sonhei e esperei para pisar. E, pela primeira vez, não teve nenhum segurança para me tirar de lá”.

Desde então, Nicole passou a participar de concursos e colecionar prêmios. Em 2021, foi eleita Garota G Belo Horizonte e Miss Minas Gerais. Agora, a drag concorre ao Miss Brasil Plus Size. O concurso, idealizado pela ONG Casa Mãe Vovó Solidária Fernanda Tilepa, aconteceria em maio, no Rio de Janeiro, mas devido à pandemia do novo coronavírus, foi transferido para agosto, embora tudo ainda seja muito incerto em relação às datas.

Mas por que a escolha de Ouro Preto para representar a sua faixa e fazer o seu álbum de fotografia orgulhosamente divulgado em sua conta no Instagram? “Há várias cidades que representam Minas Gerais. O estado é imenso e não teria como eu visitar cada uma delas para fazer a divulgação. Mas Ouro Preto é o começo de tudo, é uma espécie de berço cultural de Minas, do Brasil e do Mundo. Tanto que leva o título de Patrimônio Cultural da Humanidade. Além de admirar todos os seus aspectos culturais, que envolvem culinária, arquitetura e o barroco, Ouro Preto é uma cidade muito forte para mim. Foi por isso que eu resolvi escolher essa cidade tão importante para divulgar a minha campanha de miss”.  

Nicole escolheu Ouro Preto para divulgar a sua campanha de miss. Crédito - Domingos Gonzaga.

Além disso, João conta que embora more em uma cidade relativamente perto, somente agora, em meio à pandemia, e seguindo todas as orientações das autoridades de saúde, ele realizou outro sonho de infância: visitar a antiga Vila Rica.  

“Eu sentia muita vergonha de ser um mineiro que ainda não conhecia Ouro Preto”. Embora João se refira à cidade como um lugar “fascinante”, ele também considera de extrema importância não se esquecer que o lugar foi erguido com muito sofrimento. “Foi uma época de abusos. Eu fico imaginando o peso que deve ter sido para os negros. Mesmo vivendo sob péssimas condições, eles ainda foram fortes o bastante para construir coisas tão belas. A história do povo negro nunca deve ser apagada”.

João relata também que embora tenha se esforçado muito para conquistar o seu sonho, ele também recebeu o apoio e o incentivo de algumas drags do seu meio de convivência. "Muitos nomes, imagens e situações surgem na minha cabeça agora. Mas, eu gostaria de agradecer o meu fotógrafo Domingos Gonzaga, minha maquiadora Thayene e minha produção Perfect e Robson pela força.

“A Nicole ainda não se tornou o que eu espero que ela seja. Da mesma forma, o João também não está pronto. O que fazemos é, diariamente, pisar um degrau nessa grande escada para a evolução humana, independentemente de cor, raça, credo, orientação sexual ou formas de se expressar artisticamente".

Foto - Divulgação. Crédito - Domingos Gonzaga.

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