A primeira diretora trans, negra e periférica em uma organização de jornalismo do Brasil

Uma história de dor, amor, coletividade e jornalismo.

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Por Sanara Maria dos Santos Araujo Publicado em 20/02/2024, 10:24 - Atualizado em 20/02/2024, 10:24
Foto – Sanara à época do coletivo anarquista, em 2017. Crédito – Arquivo pessoal. Siga no Google News

É muito bom reencontrar vocês neste começo de ano. Coube a mim a missão de escrever a nossa primeira Diversa de 2024 e trago boas novas…

A primeira é que iniciamos este ano olhando para a frente de uma maneira muito potente, olhando para o futuro. Sim, somos um laboratório que experiencia o jornalismo com a ótica da diversidade, representatividade e inclusão. Uma organização que completou 14 anos de existência cultivando ecossistemas de jornalismo local e sendo cultivada por eles.

Em 2024, escolhemos dar novos passos nesse cultivo… E um exemplo disso é a minha entrada para a direção da Énois.

Me chamo Sanara Maria dos Santos Araujo, nasci e fui criada na favela da Ilha, uma pequena comunidade que fica entre a zona leste de São Paulo e Santo André, no ABC Paulista. Por estar nesta fronteira, fui esquecida e pouco cuidada pelas políticas públicas. Assim como meu corpo, assim como o jornalismo local. 

Viver entre as ruas, becos, lajes e vielas moldaram minha visão sobre o mundo que vivemos, crescer em um ambiente tão complexo onde as violências, vulnerabilidades, potenciais e culturas coexistem, me levaram desde nova a entender que “sozinha eu não aguento”. Para quem mora na favela, essa é uma das primeiras  percepções: a coletividade é necessária para garantir a nossa existência.  

E como mulher trans e negra, dentro da comunidade, encontrar uma coletividade que abarcase quem eu era e quem eu sou foi desafiador. Por muito tempo, eu vivi na sombra do que eu queria ser. Até que chegou o momento em que meu corpo tomou a frente e decidiu por ele mesmo se mostrar…

Como disse Angela Davis, “quando uma mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”. Mas, às vezes, esse movimento não é tão fácil de vivenciar. Em 2017, me encontrei expulsa de casa carregando apenas a minha vulnerabilidade e sendo acolhida por um coletivo anarquista no ABC Paulista. Neste momento, nascia Sanara Santos.

Assim a vida se apresentou. Dura, real e implacável. Foi onde o destino cruzou meu caminho com a Énois. Primeiro com uma plaquinha escrita "Este restaurante éPrato Firmeza”. Anos antes de eu entrar para o coletivo anarquista, a Énois já tinha passado lá mapeando restaurantes e iniciativas de comida para o Prato Firmeza, o nosso guia gastronômico das quebradas.

Meses depois da nossa atual Agente de Dados e Impacto,e também minhagrande amiga, Mel Oyá, entrou para a Escola de Jornalismo, que foi oprincipal projeto da Énois durante anos. Dez jovens das periferias de São Paulo eram convidadas e convidados a se aprofundar sobre conhecimentosligados a um jornalismo diverso e inovador, no período de um ano. Foi neste ano que a Énois produziu o seu segundo Prato Firmeza e umdocumentário chamado Jovens e a Grana, em que  fui convidada para mostrar a minha vivência com o dinheiro sendo uma jovem que sobrevivia da arte e sem apoio familiar.

Ter a oportunidade de contar a minha história para jovens comunicadores acendeu uma chama em mim, quem é jornalista sabe muito bem do que estou falando. Eu senti o poder da comunicação e queria aquilo pra mim.

Decidi me aproximar da Énois não apenas como uma espectadora, mas como alguém determinada a fazer parte dessa transformação. Ingressei em 2018 nos programas oferecidos, ávida por aprender e crescer. Hoje posso afirmar que cada oficina moldou minhas habilidades e expandiu minha visão de possibilidades de existência pessoal e profissional.

Se colocando para jogo

E como tudo é um via de mão dupla, o pessoal da Énois (na época, Amanda Rahra, Simone Cunha, Nina Weingrill, Gisele Brito, Simone Freire, Vinicius Cordeiro e Vicente Goés), também identificou algo meu que era importante para a organização. Quando terminei a Escola de Jornalismo, não sai da Énois, me coloquei para jogo assim como fui colocada e incentivada a permanecer. Foram freelas, cafés com bolos, risadas e acolhimento que desenharam um lugar pra mim. 

No final de 2019, a Énois passou por uma reestruturação e acabei entrando para a equipe fixa. Primeiro, como residente e depois como produtora chefe de formação. No ano seguinte, me tornei Coordenadora de Formação, totalizando mais de 200 encontros formativos dentro dos projetos da Énois, aprendendo com o DNA educador da organização e compartilhando a minha essência. Me descobri aqui uma boa educadora.

Para mim, os anos passaram voando e em 2024 aqui estou eu. Não como participante, mas como membro ativo da diretoria da Énois. Esta jornada foi uma montanha-russa de aprendizado, desafios e conquistas, sempre com coletividade. Tornei-me uma testemunha viva da capacidade da Énois de transformar vidas, inclusive a minha. Assumir o papel de diretora é um privilégio e uma responsabilidade que levo com orgulho. Estou ansiosa para continuar contribuindo para o impacto positivo da Énois e inspirar outros jovens a escreverem suas próprias histórias de sucesso. 

Aqui começamos o ano com novos planejamentos, novos desafios, uma nova diretora e muita vontade de continuar transformando o jornalismo, juntas, porque é mais legal e podemos ir mais longe. E foi assim que esse sonho se tornou realidade. 

Quero deixar um breve agradecimento a Nina Weingrill e Leticia Tavres, minhas antecessoras no cargo de Diretora, a toda rede Énois que passou pelas nossas formações, e às minhas colegas de trabalho.

E não poderia esquecer que esse espaço é celebrado após o mês da Visibilidade Trans, enquanto muitas mulheres trans, travestis, homens trans, trans masculinos e não binários, lutam para conquistar sonhos e escapar de uma realidade regada de dor e ódio. Mas também encontram momentos como este para celebrar utopias. 

Que a gente nunca esqueça: Nada sobre nós, sem nós!

Foto - Sanara Santos. Crédito - Arquivo pessoal.

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