Leia “Não literatura”, por Paulo Geovane e Silva

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Por JornalVozAtiva.com Publicado em 24/05/2018, 15:50 - Atualizado em 24/05/2018, 17:51
Paulo Geovane e Silva é professor de Literaturas de Língua Portuguesa da Faculdade de Ciências Sociais Aplicadas de Belo Horizonte (FACISABH) e do Coleguium Belo Horizonte, mestre e doutorando em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa pela Universidade de Coimbra (Portugal). Escreve mensalmente no Voz Ativa. O livro que não li tem uma capa dura, verde-lodo, levemente desbastada pelo tempo; um miolo médio, marcando uma extensão entre três e trezentas mil páginas não numeradas. Numa e noutra folha, de cor amarelada, habitam orelhas feitas sabe-se lá por quem, e isso pouco ou nada importa. Importa-me mesmo é a insistente ideia de o não ter lido, uma vez que a sua leitura prende-se ao fato muito empírico de o livro e o seu autor – ou autora – não existirem. Nenhum deles existe e por isso eu não o li. Procurei pela editora, por dados bibliográficos e nada encontrei... Deixe-me descrever esse fato metafísico. Numa tarde amadrugada, sem data, meu coração pedia, insano, um livro raro, inédito no efeito estético, excepcional no enredo ou no verso, completamente avesso aos parâmetros da existência. Eu queria qualquer arrebatamento escrito e buscava-o inescrupulosamente. Fui aos meus livros clássicos, às bibliotecas, aos contemporâneos e nada... até que eu encontrei a suma possibilidade: um livro que nunca li. Ele se me afigurou à mente tal como o olhar condescendente do primeiro amor, aquele correspondido – o qual, tal como o meu livro, também não existe. Voltemos, portanto, ao livro, esse inigualável: seu conteúdo não era em prosa e nem em verso, não falava de descobertas ou de amores e dramas, não resgatava as mitologias e não se valia do cristianismo, tão desbastado quanto a sua capa; não criava alegorias para criticar as classes sociais, não metaforizava e não representava qualquer vontade humana; não havia nele intertextualidades, ele não era fonte e nem influência; não havia nele ideologia de qualquer ordem, não era utopicamente vivificador como querem os poetas e não era meramente reflexivo como querem os prosadores; não era perspectiva, não era silêncio e nem voz; não era pensamento, sentimento, inspiração; não era língua mimetizada ou antropomorfizada, não era desejo e nem pulsão, não era vida ou morte, não era código ou ponte entre mim e o mundo; não era revolta, sintoma ou catarse; não era literatura e não literatura era... Não literatura era... Não literatura era... Não literatura era... Imagina? A cor do livro cintilava – aos meus olhos somente –  todo o seu significado: eu o abria e via nele todas as histórias de todas as pessoas em todos os tempos e espaços, todas as guerras, sexualidades, conflitos, silêncios, lágrimas e sorrisos; eu via nele todo o dinheiro do mundo, todos os credos em ação diante de um deus esboçado pela cultura; eu via nele todos os problemas sistêmicos da existência individual e coletiva; eu via nele todos os desejos e planos, empreendimentos, metas e frustrações inevitáveis; eu via nele todos os aprendizados, trocas, alteridades, empatia e antipatia; e não menos via as apatias; eu via nele todas as incompreensões, todos os equívocos mal ou não desvendados, todas as dissidências, todos os egos; eu via nele o tambor, a cruz, a bíblia, o kardec e o alcorão, o sari, o kimono, a burca e os camelos; eu via nele as vidas e as mortes em fluxo anelar, sem fim e brilhando numa velocidade que me dava náusea; eu via nele o fluir dos milênios e todos os mundos existentes em cada alma; eu vi os retornos de quase todas essas almas, as suas repetições e melhoramentos; eu via todas as línguas vivas, mortas e por morrer ou nascer; eu via nele o tudo e o nada sendo um só corpo em redemoinho que arrasta uma galáxia inteira. Eu vi. Eu vi o livro que não li: onde nada está escrito, tudo está escrito.

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