‘Cinema é diferente de filme! ‘, por Hércules Tolêdo Corrêa

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Por JornalVozAtiva.com Publicado em 23/07/2018, 15:44 - Atualizado em 23/07/2018, 15:44
Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas. Costumo dizer para meus alunos e minhas alunas que gosto mais de cinema do que de filme. E qual é a diferença? Bem, filme a gente vê de qualquer forma e a qualquer hora. Na minha infância, a gente podia ver filmes na TV. Eram poucas as redes de televisão disponíveis. No interior, tínhamos apenas duas, quando muito. Eu sonhava em morar na capital e ter quatro, cinco, seis canais disponíveis. Aí veio o videocassete. Era ótimo, porque podíamos ver os filmes a qualquer hora que quiséssemos. Podíamos voltar o filme. Rever cenas. E podíamos, inclusive, gravar da TV para vermos quando podíamos. Do videocassete, evoluímos para os DVDs, uma mídia bem mais resistente que as frágeis e enroláveis fitas de vídeo. E podíamos até gravar de fita de vídeo para DVD. Mas a explosão da internet no final dos anos 1990, no Brasil, nos trouxe, alguns anos depois, a banda larga e seus vídeos. Hoje, temos muito mais formas de acesso a filmes de diferentes gêneros: TV a cabo, com centenas de canais; canais especializados em certos gêneros; aplicativos para vermos filmes em smartphones; sites piratas que disponibilizam filmes raros; os famosos YouTube e Netflix. Tudo isso ampliou significativamente o acesso aos filmes. Se moramos na área rural ou em pequenas cidades, se estamos em viagem (ônibus e aviões também têm seus televisores e sistemas de exibição de filmes), sempre podemos nos distrair e nos divertir com filmes. Mas eu continuo dizendo: eu continuo adorando o cinema. Eu amo a sétima arte. Aquela que nasceu na virada do século XIX para o século XX, lá na França. A gente sai de casa. Entra numa fila. Compra um ingresso (que não está barato) e entra numa sala escura! E ali um outro mundo passa a existir. Em época de conexão full time, o melhor é desligar o celular. Ficar alheio aos telefonemas e às infinitas mensagens que recebemos hoje, dos grupos e de amigos... Bons dias a rodo, com imagens da internet de gosto bem duvidoso, acompanhadas de mensagens mais duvidosas ainda... Distração só com a pipoca. Porque pipoca combina com cinema desde os anos 20 do século XX, quando foi introduzida por uma visionária empreendedora norte-americana. É por gostar tanto de cinema que outro dia me dei de presente ir a uma sessão em plena tarde de dia útil. O presente se tornou mais especial porque o que vi, no cinema, foi poesia pura, vinda do outro lado do planeta. Lá do Japão. Entre-laços, filme japonês lançado este ano, dirigido e roteirizado por Naoko Ogigami, trata da complexidade das relações humanas. Rinko é uma mulher transexual e encontrou em Makio um grande companheiro: compreensivo, amoroso, solidário. Rinko também é cuidadora da mãe do marido, num asilo. Cuida da sogra de maneira muito carinhosa. Quem não é muito legal na família é Hiromi, irmã de Makio, que vive abandonando sua filha de 11 anos, Tomo, para acompanhar um novo amor que surge. Curioso é que o ator que faz Rinko se chama Tomo Ikuta e a garota que faz a Tomo se chama Rinka Kakiara, invertendo-se os nomes da realidade para a ficção. Se traduzido literalmente, o título do filme seria “Quando eles pedem fogo” (Karera ga honki de amu toki wa), bem menos significativo para nossa cultura do que “Entre-laços”, expressão que aponta duplamente para os “laços de família”, que também é título de um importante livro de contos da escritora Clarice Lispector, e para os laços de tricô, uma interessante metáfora visual presente no filme. Uma das cenas mais poéticas e significativas do filme mostra a família (pai, mãe e filha) unida e tricotando. Altamente simbólicos no filme são também os 108 pênis de tricô tecidos e preenchidos por Rinko e que são queimados numa espécie de ritual de finalização de sua redesignação de gênero. A sociedade japonesa é tida, muitas vezes, como altamente conservadora. Mas também é possível, nela, encontrar pessoas e famílias bem tolerantes. Ao retratar as complexas relações humanas e os diferentes perfis, Entre-laços apresenta tanto uma família compreensiva e tolerante, como a forma com que os pais de Rinko lidam com sua identidade de gênero, a partir mesmo de sua adolescência, retratada com a inserção de um flashback, quanto o preconceito e intolerância da mãe de um adolescente, colega de escola de Tomo, que está se descobrindo gay, em meio ao bullying da sala de aula. A própria Tomo, abandonada pela manhã em diversos momentos, tem suas dificuldades para lidar com o colega de sala de aula mas, ao ter que conviver em casa com a tia transexual, vai aprendendo a conviver com as diferenças. Saí do cinema renovado e em êxtase, após assistir Entre-laços. Assim que vejo a experiência estética de ir ao cinema. Transportar-me para um novo mundo, distante e com suas diferenças, num outro continente, do outro lado do planeta, ao fixar os olhos na telona, no escurinho, com o celular desligado e completamente imerso na “ficção real”. Muito diferente de ligar a TV ou computador e assistir a um filme.

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