A forma de apresentação em público e o comportamento protocolar em relação às autoridades constituídas, numa sociedade calcada em bases hierárquicas, pressupunha nos centros urbanos do mundo colonial uma série de etiquetas. A etiqueta era um dos alicerces da sociedade estamental, por estabelecer publicamente as diferenças de posição social entre a população, preservando a autoridade baseada na hierarquia. Só que a partir de uma maior fluidez entre as camadas sociais, principalmente a partir do último quartel do século XVIII, as normas de etiqueta social vão sendo paulatinamente modificadas, ou rompidas. Aqui nos deteremos em alguns exemplos dos padrões de apresentação e comportamento público, desde o início daquele século, tidos como diferenciadores dos níveis de status social da população mineira e vila-riquenha.
Nem sempre eram conhecidas ou nomeadas leis que determinassem os protocolos e padrões de etiqueta. Costumes e tradições passadas eram evocados quando havia disputas sobre privilégios e honrarias devidas à posição social. Mas muitas vezes, para apaziguar as discordâncias, ocorria interferências da autoridade régia. Foi o caso da ordem régia de 13/2/1727, que regulamentava os lugares a serem ocupados pelas autoridades nas "ocasiões públicas, que ao Rei se oferecem, em que se fazem teatros para assistirem os Governadores e acompanhantes”. Foi necessária a intervenção régia porque nestas ocasiões se achavam "embaraçados os Exmos. Ministros políticos, como são os Ouvidores, Provedores, e Superintendentes da Casa da Moeda, e outras pessoas particulares, tomando uns e outros os lugares mais próximos aos lados dos Governadores", o que era causa de "alguns descontentamentos e dissabores...". O rei D. João V determinou então a
[...] devida separação, dando dos Governadores o lado direito aos Ministros políticos, e os esquerdo aos oficiais militares, em que também se inclui o Secretário do Governo, (...) seguindo-se aos tenentes Generais. Guardando-se nisto a mesma ordem que sempre se praticou nas Igrejas.1
Um episódio acontecido na década de 1740 em Vila Rica merece atenção, por explicitar como os ritos de reverência não eram apenas meras e incômodas convenções (como passaram um pouco a sê-lo no último quartel do século), mas sim, elementos completamente integrados à ordem estamental, tidos como obrigações fundamentais pelos cidadãos sequiosos de status. Trata-se de uma decisão inusitada do Senado de não mais fazer "todas as funções e atos públicos de maior concurso" na Igreja Matriz de N. S. do Pilar, elegendo para isso a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, Matriz do bairro do Antônio Dias, por considerarem "templo maior, mais suntuoso, e com maior comodidade".
O motivo principal aventado pelos camaristas para tal decisão seria a "descortesia pública" com que teriam sido tratados em função realizada no templo do Pilar, quando foram "em Corpo de Câmara", acompanhados do Ouvidor e do governador Conde de Bobadela, "render graças pelas melhoras da Sua Majestade", que se achava doente: "[...] nos faltaram com as cortesanias e cerimônias que se costumam em tais atos, e sempre se observaram com o Senado, privando-nos dos dutos que se costumam ao ofertório, e da pax".4
O vigário colado da Igreja do Pilar, Pedro Leão de Sá, protestando contra o “acordão odioso, e apaixonado" da Câmara, que tirou da sua Igreja a "preeminência de nela celebrarem todas as funções, e atos públicos, que com sua assistência celebravam", contesta a versão apresentada pelos senadores, dizendo que os motivos aventados por eles seriam "frívolos pretextos". Que teriam transferido as celebrações para a Matriz de N. S. da Conceição unicamente "pela razão de serem todos os camaristas daquela freguesia de Antônio Dias."
O episódio soa como uma continuidade da disputa existente, desde a guerra dos emboabas, entre "jacubas" (moradores do Antônio Dias) e "mocotós” (moradores do Pilar. O próprio padre estimula essa interpretação, ao afirmar que "de ação tão mal acordada", como a queixa dos camaristas, "nascem na plebe umas aversões reciprocas entre uns e outros Paroquianos”. E justifica o seu lado na disputa pela proeminência econômica e política da freguesia do Pilar, dizendo ser do conhecimento de todos "que comumente as pessoas de maior distinção no estado civil habitam na Freguesia do Suplicante e na Vila de Ouro Preto, onde tão bem floresce o negócio, que é a base da República". As interpelações do vigário do Pilar surtiram efeito e nessa contenda os camaristas saíram perdendo. Carta régia de 26/4/1745 determinava à Câmara fazer as ditas funções, conforme a tradição, na Matriz do Pilar de Ouro Preto, e não mais no Antônio Dias.6
Em grandes solenidades cívico-religiosas haveria também etiquetas e normas relativas ao modo das pessoas se vestirem, uma "moda" oficial que traduzia a posição social dos indivíduos, o que se refletia também no uso do vestuário cotidiano. Porém, o “bom gosto” do vestuário era muitas vezes questionado por aqueles recém-chegados da Europa. Podemos verificar isto já em 1717, nas ironias de D. Pedro de Almeida, o Conde de Assumar, que acabara de chegar de Portugal, ao comentar sobre a comitiva de paulistas que o acompanhariam em sua jornada para tomar posse no governo das Minas:
[...] eles vinham tão ridículos cada um por seu modo, que era gosto ver a diversidade das modas, e das cores tão esquisitas, porque havia casacas verdes com botões encarnados, outras azuis agaloadas por uma forma nunca vista e finalmente todas estravagantes. Vinham alguns com as cabeleiras tão em cima dos olhos, que se podia duvidar se tinham frente, traziam então o chapéu caído para trás (...) com esta luzida comitiva fomos encaminhando para a cidade.7
Bem mais próximos do moderno gosto neoclássico europeu estariam os chamados “homens bons” dos fins do século XVIII, conforme descrição de Joaquim Felício dos Santos, detalhando em pormenores um vestuário impecável, verossímil apenas para aquelas autoridades mais abastadas e poderosas, e em ocasiões especiais de muita gala:
Usavam os homens trazer cabeleiras trançadas em forma de rabicho, entrelaçadas com um cadarço de gorgurão, arrematando na extremidade por uma laçada; chapéu a Frederico, de três pancadas; camisas de folhos com colarinho baixo; gravata de lenço branco bordado; colete de cetim Macau, bordado de lantejoulas, e comprido em forma de fraque, com abotoadura de pedras; casaca de veludo de diversas cores, degolada, comprida sem enfranque, com portinhola e canhões largos e dobrados; calção largo de seda ou veludo, apertado com fivela de ouro por cima de meias de seda pérola; sapatos pretos pontiagudos com fivelas de cravação de pedras; bastão grosso, de castão e ponta de ouro; relógio com cadeia de cornalina; rico florete de bainha de ouro e guarnição em forma de um S...8
Certo é que o cuidado com a aparência e as vestimentas era algo cultivado pela elite ilustrada, como se depreende inclusive do vastíssimo guarda-roupa de Tomás Antônio Gonzaga, que foi arrolado peça por peça nos Autos de Devassa da Inconfidência Mineira.11 Mas havia também leis que restringiam o uso de algumas indumentárias a determinadas autoridades e funções, o que muitas vezes era causa de contestação entre segmentos de menor prestígio social ou poder econômico, como as corporações de ofício.
Trazemos como exemplo a petição encaminhada em 1757 pelos irmãos pardos da Confraria de São José, que agregava oficiais mecânicos, solicitando ao Rei que não fossem enquadrados em uma lei de 1749, "que proibira o uso de espada ou espadim à cinta às pessoas de baixa condição, como eram os aprendizes de ofícios mecânicos, lacaios, marinheiros, negros e outros de igual ou inferior condição..." Mostrando todo o orgulho de sua profissão, os irmãos assim justificam a sua solicitação:
... sendo legítimos vassalos de V. Majestade e nacionais daqueles domínios, onde vivem com reto procedimento, sendo uns mestres aprovados pela Câmara da dita Vila em seus ofícios mecânicos e subordinados a estes trabalham vários oficiais e aprendizes, que outros se vem constituídos mestres em artes liberais, como os músicos, que o seu efetivo exercício é pelos templos e procissões públicas, aonde certamente é grande indecência irem de capote, não se atrevendo a vestirem Corpo, por se verem privados do adorno e compostura dos seus espadins, com que sempre se trataram e que, finalmente, outros aspirando a mais, se acham mestres em gramática, cirurgia e na honrosa ocupação de mineiros...12
Como vemos, os irmãos da confraria de São José recorrem em sua petição à justificativa de sua nova condição social, que os faria meritórios de trazerem a “espada, ou espadim à cinta”. O Governador da Capitania de Minas, Conde de Bobadela, sendo então instado para dar o seu parecer sobre o assunto, não poupa palavras em defesa da petição dos oficiais, demonstrando em sua declaração o alto grau de sociabilidade e independência econômica adquirida pelos pardos ainda em meados do século XVIII:
O que os suplicantes alegam na petição junta é inteira verdade, pois nesta Capitania há homens pardos afazendados, com escravatura, e fazenda, há mestres de ofícios, pintores, músicos e muitos que vivem de requerentes e dos mais ofícios que referem, com estimação, e bom procedimento, pelo qual se fazem dignos.14
Quanto à alta moda feminina, o mesmo autor Felício dos Santos também descreve detalhadamente o vestuário das senhoras brancas em finais dos setecentos, nas raras oportunidades que lhes eram oferecidas de saírem em público, sempre em companhia de escravizados, que também vestiam a rigor, embora obrigatoriamente descalços, para marcar sua posição social:
As senhoras traziam na cabeça uma coifa de seda branca presa ao cabelo com alfinetes e borla de fio de ouro na extremidade; camisa de folhos apertada ao pescoço; espartilho de barbatanas, sobre o qual vestiam um macaquinho de veludo, com rica abotoadura e flores de pedras pendentes sobre o peito; grosso afogador e pesados brincos de pedraria encastoada; saia de imensa roda com longa cauda, que trançavam no braço; sapatos de bico agudo levemente voltado para cima, com altos saltos de madeira; bastão fino; traziam os dedos das mãos quase inteiramente cobertos de anéis de ouro..."15
Sabemos que o cuidado com os cabelos (incluindo os polvilhos para empoá-los, feitos de trigo macerado ou goma de mandioca, as perucas e as coifas), era uma constante tanto entre os homens quanto entre as mulheres de posição. O ofício de cabelereiro era tão antigo quanto a própria divisão estamental da sociedade mineira. Já em 1727 João Alves Viana pedia licença à Câmara de S. J. Del Rei "para usar de sua loja de molhados e de seu ofício de cabelereiro".18
Ao dobrar do terceiro quartel do século XVIII, e principalmente durante os cinco anos do governo Cunha Menezes (1783-1788), as normas de etiqueta e comportamento público sofreriam grandes alterações, muito devido ao enfrentamento de Cunha Menezes para com as autoridades civis constituídas, com a valorização de um novo patamar de nobreza: a carreira militar. Mas as etiquetas e comportamentos também se modificam pela contínua inserção de dezenas de milhares de pardos e pardas na vida social, em várias atividades profissionais, como o comércio, que a priori não se enquadrava em nenhum degrau da classificação estamental. Pelo contrário, a intensificação e liberdade da atividade mercantil sempre foi sinal, no mundo moderno, da constituição de uma relação "classista" entre as camadas sociais.
Contraditoriamente, o apego à pompa e ao fausto por parte de Cunha Menezes permanecia, o que pode ser exemplificado na construção monumental do prédio da Casa de Câmara e Cadeia, atual Museu da Inconfidência, ou na ostentação das "Festas Reais" de 1786, em homenagem ao duplo casamento dos infantes em Portugal, que foram de uma pompa incrível em todas as Minas, tudo à custa dos habitantes, em época de franca decadência aurífera, o que gerou um grande embate político.19
A drástica queda na arrecadação das rendas dos impostos e a diminuição da crença generalizada dos povos no fausto imperial, não inibia os gastos excessivos e as fartas demonstrações de pompa e poder. Mas essa ostentação não se restringia às ações específicas do governo da capitania de Minas, se alastrando pelas novas elites (os novos ricos), principalmente na alta hierarquia militar. É muito sugestiva, neste sentido, a reclamação protocolada oficialmente pelos moradores de Pitangui, contra o capitão-mor daquela Vila, antes um "pobre mercador", mas que, uma vez rico, mandou gravar, "com letras douradas", um letreiro na sua janela: "Quem dinheiro tiver fará o que quiser". E, segundo os mesmos moradores, estaria "bem desempenhando a vaidade do título".22
Sobre o autor
Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro.
1 Arquivo Público Mineiro, CMOP, cód. 7.
4 Revista do Arquivo Público Mineiro (RAPM), vol. XVII, 1912, pp. 356 a 363. Chama-se duto cada uma das oscilações que se imprimem ao incensório, ou turíbulo, para diante e para trás. E Pax seria uma saudação então especialmente dada aos senadores no cerimonial religioso. Ou seja, os camaristas reclamam de não terem sido devidamente incensados e saudados na Matriz do Pilar.
6 Arquivo Histórico Ultramarino (AHU), Cód. 241, fls. 294. In: RAPM, vol. XXVI, p. 205.
7 "Diario de Jornada "Diario da Jornada que fez o Exmo Senhor D. Pedro desde o Rio de Janeiro até a Cidade de São Paulo e desta até as Minas no Ano de 1717". In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (RSPHAN), vol. III, 1939, p. 302.
8 SANTOS, Joaquim Felício dos. Memórias do Distrito Diamantino. 5a. ed. Petrópolis, Ed. Vozes Ltda/INL, 1978, p.115. Gorgurão: tipo de tecido; Chapéu a Frederico, de três pancadas: talvez alusão a Frederico II, da Prússia. Era um chapéu de três pontas, muito popular na Europa, em uniformes militares; folhos: babados sobrepostos às camisas; Cetim macau: originário de Macau, leste da China, território português até 1999; sem enfranque: sem serem arredondadas nos lados do corpo; portinholas e canhões: panos ornados que guarneciam, respectivamente, os bolsos e pulsos; cadeia de cornalina: corrente de relógio com variedade de calcedônia no tom vermelho-claro.
11 Autos de Devassa da Inconfidência Mineira, vol VI, 1976. Deve-se considerar também que seriam peças de um enxoval de alguém que, quando preso, estaria com casamento marcado para daí a uma semana.
12 In: RAPM, vol. XXVI, 1975, p. 224.13/3/1758
14 LANGE, Francisco Curt. “A Música em Minas Gerais”. in: MOURÃO, Rui. O Alemão que descobriu a América. Belo Horizonte, Itatiaia, 1990, p. 43.
15 SANTOS, ob. cit., p. 116. Coifa: pequena rede com que as mulheres amparavam o cabelo; afogador: colar ou gargantilha.
18 CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João Del-Rei, 2. ed. Belo Horizonte, Imprensa Oficial, p. 55.
19 APM, CMOP, cód. 112-A, fls 187 a 194v. In: VERSIANI, Carlos. As Cartas Chilenas e as Festas de 1786 em Vila Rica: a história oculta sob os versos de Gonzaga. Revista do IEB, vol. 38, 1995, p. 57.
22 RAPM, vol. XXVI, 1975, pp. 280. Trata-se do Tenente Coronel João Carneiro da Silva, cuja fortuna proviria do contrabando de diamantes. Segundo Felício dos Santos, ob. cit., p. 204, João Carneiro seria protegido de Cunha Menezes, "que lhe dera uma portaria para não poder ser preso em parte alguma sem sua ordem especial, visto estar encarregado em certas diligências secretas". Conforme Felício dos Santos, o intendente Meireles ignorou tais ordens e o despejou do Tejuco, em processo que começou "por ter mandado dourar as cimalhas de sua casa".
Texto muito interessante, me fez imaginar o dia a dia da época. Parabéns, Carlos Versiani!