“Sobre Caio Fernando Abreu e violência anti-gay”, por João Paulo Teluca Silva

É preciso falar do mofo, mas também é preciso relembrar os morangos. “Terça-Feira Gorda”, assim como todo o livro “Morangos Mofados”, pode ser enxergado como um elogio aos sujeitos que têm a “audácia” de romper com os padrões tradicionais e se darem ao luxo de não usarem máscaras.

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Por João Paulo Silva Publicado em 02/06/2017, 20:00 - Atualizado em 02/06/2017, 20:00
João Paulo Teluca Silva é graduado em Comunicação Social (com ênfase em Publicidade e Propaganda) pela Fundação Universidade do Vale do Itajaí, especialista em Filosofia da Comunicação pela Fundação Universidade Regional de Blumenau, graduando em Jornalismo pela Universidade Federal de Ouro Preto e repórter no Jornal Voz Ativa.   Seria possível percorrer os dolorosos vieses da violência anti-homossexual através das fatigadas retinas da literatura? O pensamento rebelde e desgrenhado de Caio Fernando Abreu talvez nos possibilite isso. Caio Fernando é um pensador quente, por vezes cáustico. Suas ideias incendiárias fez desse escritor um dos melhores contistas brasileiros do século XX. Suas produções literárias são verdadeiros abalos sísmicos na alma dos acomodados. Ninguém percorre os livros de Caio sem adentrar nas mais escuras sombras do comportamento humano. Caio parece fazer da abordagem sexual uma experiência limite na sociedade hipermoderna na qual os homossexuais seriam seres desterritorializados: desprezados ou mal vistos pela família, rejeitados e agredidos na escola, recusados e ameaçados de punição na igreja, sem amparo legal ou institucional do Estado. De acordo com Gisele Teixeira Porto, (2004), as relações entre literatura e sociedade podem se manifestar tanto pela temática quanto pela linguagem explorada por um texto, seja ele lírico ou narrativo. Daí a relevância de refletir o homem através dos espelhos da ficção. Questionar de que modo a produção de um autor incorpora à narrativa ou à poesia conflitos da sociedade a que se refere o texto é um meio de melhor compreender como se estabelecem as relações entre estrutura literária e artística e condicionamento social, o que permite averiguar a função da obra e o seu compromisso com a realidade. As personagens do livro de contos “Morangos Mofados”, de Caio Fernando Abreu são coadjuvantes de uma sociedade massificada. Parafusos dispensáveis numa sociedade mecanizada, marcadas pelos estereótipos, marcados pela solidão. Às vezes rendidas, estas personagens estão presas a um sistema de significação, mas sempre, resistem, atirando-se a um caminho novo. Rabiscam suas próprias cartografias. Destroem, para construir novamente, com seus próprios termos. Como Van Gogh, como Clarice Lispector, como Rimbaud, louco e só procurando pelas ruas geladas de Paris por seu Verlaine. O conto “Terça-Feira Gorda” faz parte do livro “Morangos Mofados” e fala da violência em torno de uma relação casual entre dois homens. Diferentes - do ponto de vista da heteronormatividade - o casal luta pela sua diferença. Esta diferença precisa ser defendida em "Terça-feira gorda", onde uma relação homossexual percebe seus limites, onde o autor verifica os limites do respeito e da alteridade. Através da metáfora do carnaval, o texto revela o grau de hipocrisia dos jogos sociais, denuncia a fantasia como local de aprisionamento, como uma pedagogia das proibições. Os personagens estão no último dia de carnaval, no último momento da fantasia, no instante em que os personagens estão tentando transformar seus desejos em realidade. Estão no limite e não podem atravessá-lo. O conto é narrado em primeira pessoa e fala dessa história de desejo entre dois homens numa espécie de jogo erótico descrito pelo eu - lírico de Caio Fernando Abreu. Os personagens se seduzem em uma festa de Carnaval. Ao se retirarem para a praia, fazem amor e acabam sendo agredidos físicos e verbalmente por um grupo de pessoas não identificadas. “O carnaval, em ‘Terça-feira gorda’, é a alegoria da própria tessitura de violência sombria mesclada a explosões circunstanciais de euforia e aparente desregramento que caracterizam um modo de ser ‘alegre’, irresponsável e brutal. Supõe-se que “Terça-feira Gorda” seja uma denúncia ao conservadorismo e violência da sociedade brasileira, ou seja, “o mofo” simbolizando o caráter opressor, intolerante, violento e machista do país. O narrador emprega a metáfora das máscaras para denunciar a impostura da repressão imposta pelos integrantes da festa que, supostamente, seria liberal. Assim ele também apresenta a sinceridade daqueles que sabem “a dor e a delícia de ser o que se é”. “Foi então que percebi que não usávamos máscara. Lembrei que tinha lido em algum lugar que a dor é a única emoção que não usa máscara. Não sentíamos dor, mas aquela emoção daquela hora ali sobre nós, e eu nem sei se era alegria, também não usava máscara. Então pensei devagar que era proibido ou perigoso não usar máscara, ainda mais no Carnaval. A mão dele apertou meu ombro. Minha mão apertou a cintura dele”. É preciso falar do mofo, mas também é preciso relembrar os morangos. “Terça-Feira Gorda”, assim como todo o livro “Morangos Mofados”, pode ser enxergado como um elogio aos sujeitos que têm a “audácia” de romper com os padrões tradicionais e se darem ao luxo de não usarem máscaras. Essas pessoas pagam com a resposta de serem severamente perseguidos e punidos por aqueles que defendem a “ordem”, a “moral” e os “bons costumes”, ou seja, os bolsonaros brasileiros. Essa realidade é representada pelas personagens homossexuais do conto. Elas são perseguidas por aqueles que estão em situação oposta, os detentores do poder e os defensores das regras morais conservadoras. Esses vigilantes permanentes da moral agem de acordo com os objetivos do sistema opressor, castigando e violentando todos os que “desrespeitarem” os valores “éticos” e “morais” da sociedade. “A gente se afastou um pouco, só para ver melhor como eram bonitos nossos corpos nus de homens estendidos um ao lado do outro, iluminados pela fosforescência das ondas do mar. Plâncton, ele disse, é um bicho que brilha quando faz amor. E brilhamos. Mas vieram vindo, então, e eram muitos. Foge, gritei, estendendo o braço. Minha mão agarrou um espaço vazio. O pontapé nas costas fez com que me levantasse. Ele ficou no chão. Estavam todos em volta. Ai- ai, gritavam, olha as loucas”.        Morangos Mofados foi escrito em 1982. De lá para cá já se passaram 35 anos, quase a minha idade. Contudo, em se tratando de homofobia, percebe-se que muita coisa continua igual. Infelizmente, todos os dias, confirmamos, através dos dados de pesquisa de violências voltadas a homossexuais, que cenas de violência ainda se repetem. Cenas como a abaixo, narrada por Caio Fernando Abreu. Teria ele, sendo um homossexual, sofrido, presenciado ou vivido isso? Jamais poderá saber, Caio faleceu precocemente, em 1996. Ficou o fotógrafo da solidão, o maldito, com sua bela escrita. “Olhando para baixo, vi os olhos dele muito abertos e sem nenhuma culpa entre as outras caras dos homens. A boca molhada afundando no meio duma massa escura, o brilho de um dente caído na areia. Quis tomá-lo pela mão, protegê-lo com meu corpo, mas sem querer estava sozinho e nu correndo pela areia molhada, os outros todos em volta, muito próximos. Fechando os olhos então, como um filme contra as pálpebras, eu conseguia ver três imagens se sobrepondo. Primeiro o corpo suado dele, sambando, vindo em minha direção. Depois as Plêiades, feito uma raquete de tênis suspensa no céu lá em cima. E finalmente a queda lenta de um figo muito maduro, até esborrachar-se contra o chão em mil pedaços sangrentos.” Apesar das visíveis, plausíveis e sutis conquistas dos homossexuais, inclusive no plano legislativo e social de diferentes países, inclusive no Brasil, não se pode apagar ou esconder o quadro de violência cotidiano contra a eles dirigidos. Tudo leva a crer que “assumir-se” e viver como homossexual, ou melhor, como “gay” ainda seja difícil. A violência também não deve ser enxergada apenas como o ato físico manifestado por alguém. O ódio pode comparecer com trajes mais sutis, no entanto, devastadores em vários setores da sociedade. E a violência simbólica ainda está presente no cotidiano desses homens e mulheres com orientação sexual diferente do que prega a heteronormatividade. Ela pode se manifestar através de olhares enviesados, gracejos, dedos em riste, diagnoses, análises, rotulações, violência linguística. Todos esses exemplos são versões de violência. Algumas subjetivas, outras mais claras, no entanto todas elas deixando suas marcas e provando que a violência anti-homossexual ainda é uma triste e presente realidade no Brasil.    

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