Leia “C-A-B-E-Ç-A F-E-R-R-U-G-E-M”, por Márcio Belém
Após um breve hiato em sua produção para o JVA, Márcio Messias Belém está de volta falando de dignidade, respeito e inclusão para as pessoas com deficiência. Filho de pais surdos, o filósofo carioca se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade.
“O molho de chaves. Alguém o esqueceu na fechadura” – pensou com a sagacidade de seu olhar lançado ao objeto tilintando na porta. Conspirou em seu íntimo, disfarçando com expressões de gente distraída, que aquela era uma oportunidade ímpar, um presente dado e que não poderia ser recusado em hipótese alguma. Só lembrava de seus filhos ainda pequenos, imaginando-os indefesos do lado de fora; afim de reavê-los, tinha que se agarrar aquela única chance, oriunda da distração de quem esqueceu as chaves:
“São crianças demais para ficarem sem a mãe; estão sozinhos” – arrazoava consigo mesma, de modo que o risco valeria a pena.
Sua preocupação sobre seus filhos se intensificava à medida que a tardinha ia se liquidando, dando espaço à noite:
“É perigoso” – repetia com cuidado de mãe aflita. “Já está escurecendo. Eles ficam na rua sem ter quem os olhe; e o caçula é tão miúdo ainda” – insistia com agitação interna.
Premeditou a fuga, vendo o molho de chaves “dando sopa” na porta principal que dá acesso ao lado de fora. Se sentia sufocada dentro daquele ambiente, e tudo que mentalizou em fazer, era furtar discretamente as chaves para usá-las mais tarde; ou então “meter a bronca” dando uma de louca, levantar de ímpeto, pegar o molho, virar a chave na fechadura, abrir a porta e ganhar a rua em seguida. Essa segunda opção lhe pareceu mais atraente:
“Quero ver quem vai me pegar depois que colocar meu pé lá fora” – debochou intimamente.
Estava farta em ter que aturar aquelas pessoas estranhas, “uns carcereiros, desalmados e truculentos” dizia, cismando que se posicionavam estrategicamente nos cantos e corredores, afim de lhe coibir o deslocamento.
“Não devem ter mãe. Devem ser filhos de chocadeira. Todos indiferentes a dor de uma mãe sem os filhos pequenos, que estão perdidos por aí” – as lágrimas marejavam naquela angústia. De tanta preocupação, o ressentimento também emergia:
“Mato se preciso for; faço tudo pelos meus filhos” – maquinou. “Mas primeiro, tenho que soltar a mão desse velho que insiste em segurar a minha”.
A certa distância, ela via os olhares dos estranhos. A cisma aumentava porque parecia que não se importavam que havia um velho ali, segurando-lhe a mão tão descaradamente:
“Como assim? De onde surgiu esse velho agora, que fica o tempo todo segurando a minha mão? Deve ser outro que está aqui para me manter presa”.
Esboçou em dar o bote nas chaves. Até tentou levantar para isso, mas a mão do velho a travou em seu impulso, e ela permaneceu sentada em sua poltrona. As expressões faciais se inundaram de raiva. Gesticulou com o dedo um palavrão ao velho. Alguém bateu a palma censurando-lhe o gesto, e ela se assustou com a vibração do barulho.
Resignada parcialmente, quis cruzar os braços, mas o tal velho não desgrudava a mão. Não tinha jeito: teria que convencer aquele senhor a fugir com ela, antes que dessem conta de que o molho de chaves estava esquecido na fechadura da porta.
Fixou então os olhos aos olhos do idoso; expressou-se a ele com um jogo discreto e intencional de olhares, acompanhado de expressões faciais bem significativas. O velho respondeu que “sim” com a cabeça, e ela sentiu que não deveria esperar mais. Era agora ou nunca.
Os dois levantaram-se das poltronas em que estavam em um pulo sincronizado. Foram juntos e apressadamente em direção da porta. Ela pegou o molho de chaves abruptamente, sem se preocupar com a reação daquelas pessoas estranhas; contava com o elemento surpresa.
Virou a chave e abriu a porta. Tudo tão rapidamente. A luz natural do entardecer, que veio do lado de fora, ofuscou o olhar por um breve instante. Porém, nada que pudesse atrapalhar. Ficou ainda admirada com a força do velho, que se atracou aos estranhos que tentavam impedir a fuga, para defende-la. Com isso, ela ganhou a rua enfim, e pôs-se a correr.
“Meus filhos tão pequenos; eles precisam de mim. Meus filhos tão pequenos; eles precisam de mim” – gesticulava afoitamente.
Foi alcançada ainda na calçada, não muito longe da porta, apesar de todo esforço empreendido por seu (agora) cúmplice de fuga. Mas não estava disposta a se entregar. Ia resistir bravamente em uma luta corporal com quem lhe impedia de correr e fugir.
Mordeu sem dó o braço do “carcereiro”, que se abaixou para se livrar da mordida. Ao fazer esse movimento de “abaixar”, tomou uma cabeçada desferida por ela no rosto. Apesar do golpe bem dado ter sido bastante doloroso, ele permaneceu agarrado a ela.
Em um segundo momento, ela tentou rodá-lo e jogá-lo longe. Nem ela sabia de onde tirara tanta força. Porém, o homem não a soltava.
“Vou chutar seu saco; vou chutar, quer ver? Me solta, me solta” – as expressões e gritos que emitia, diziam exatamente isso, enquanto ela batia cada vez mais doído.
Fixando o rosto dela para que pudesse ler seus lábios, ele gritou:
– Mãe, para! Está me machucando.
– Mãe!
– MÃE!
Foi quando algo lhe soou familiar: a palavra MÃE, lida nos lábios, ainda lhe resplandecia muito significativa. Não era carcereiro ou estranho que estava ali. Era um de seus filhos; o caçula.
“Mas não pode! Meu caçulinha é bem miudinho; como assim tão velho agora, diante de mim?”
Sentiu-se confusa. Parou de bater. A mente estava com lacunas que não conseguia fechar ou preencher.
O homem insistiu entre gestos, puxando-a para dentro de casa:
– Sou eu, mãe. Aqueles ali são minha esposa e filhos: os seus netos.
Cheia de desconfianças ainda, ela apontou com o rosto em direção ao velho, que estava sentado na poltrona, como se nada tivesse acontecido. Queria saber quem era ele.
– Aquele ali mãe, é o pai. Ele é o seu marido há quase cinquenta anos. Por isso não larga a sua mão nem por um minuto.
– Não é não! Seu pai não é velho! E você também não pode ser meu filho porque é velho também, e tem barba. Meus filhos ainda são crianças – sinalizou.
De repente, a ficha dela caiu. Foi como se algumas lembranças decidissem voltar impetuosamente àquela mente já desgastada pelo tempo. Foram elas suficientes para localizar mentalmente a mãe naquele espaço/tempo. Em um lampejo que não duraria muito, mas que foi suficiente para devolver, por um tênue instante, a expressão amorosa no rosto, fazendo-a reconhecer a casa, os netos, a nora, o filho e o marido, que assim como ela, também sofria com o Mal de Alzheimer.
Virando-se aos presentes, fez para cada um a configuração de mão, tocando-a ao queijo, comunicando “pedido de desculpas”, expressado em língua de sinais.
– Não foi nada – responderam todos.
Depois, lamentando-se e recorrendo a datilologia, sinalizou:
C-A-B-E-Ç-A F-E-R-R-U-G-E-M
No modo surdo de dizer que a mente está enferrujada.
As lágrimas então desceram da mãe, abundantemente em uma convulsão melancólica, que o caçula tentou impedir abraçando-a e fazendo-a se sentir amada, mas sem sucesso.
Não havia o que fazer; apenas resignar-se.
Parecia que a memória, que é o fôlego de vida da própria alma que temos, se liquefazia nela e misturava-se ao salgado daquele mar de choro. O que restava naquilo que um dia foi um vívido reservatório, desfazia-se agora como trombas d’água que descem das serras em rios agitados e tempestuosos ao oceano sem fim; para finalmente se perderem nele. Cada um dos restolhos das lembranças descia caudalosamente, carregando a gordura dos efeitos outrora registrados pela mente, ao vazio onde perdem-se todas as coisas.
A dor de perder o que se é, diante da última e ainda irrisória capacidade de lembrar e reconhecer poucas coisas e rostos, produziu o último choro angustiado daquela mãe, esposa, sogra, avó e mulher-surda – não chorou mais após isso; era como se percebesse e dissesse, naquele último momento e ato, que não mais voltaria; alternando o choro convulsionante com pedidos insistentes de “desculpas” na língua de sinais.
Não foi nada. Não há porquê ou pra quê se pedir desculpas, se não há culpas ou culpados. As coisas simplesmente acontecem e são maiores que nós – digo.
Assim, o Alzheimer levou em definitivo dela, naquele final de tardinha e início de noite, todas as suas últimas lembranças depositadas na memória.
Nunca mais voltou a partir dali. Emudeceu-se por completo.
Ainda assim, nesse estado, posso testemunhar, não houve quem deixou de amá-la para sempre.
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