Continuo aqui minhas especulações, divagações e observações sobre o programa de governo Conta pra mim. Estava eu posto em sossego quando recebo de uma colega, professora universitária e como eu também pesquisadora da área de letramento e alfabetização (nesta ordem, já que temos trabalhado, em nossas trajetórias, com ambos os processos, mas sobretudo com o aspecto social da aprendizagem da língua escrita), algumas fotos da visita do Tito, o mascote do Conta pra mim, em um grande shopping de Belo Horizonte.
Em uma das fotos, vejo um imenso cartaz, na cor verde, no qual minha amiga ressaltou a logomarca do governo federal, com o slogan “Pátria amada Brasil”. Numa outra foto, vejo duas senhoras sentadas no quiosque e sob a bancada a foto do Tito e os seguintes dizeres: “Saiba como transformar o futuro do seu filho em alfabetizacao.mec.gov.br”. Em outras duas fotos, minha amiga segura os manuais ou guias do projeto, onde se lê, na capa: “Você já leu para seu filho hoje?”
Como já disse na primeira crônica desta série, não vejo nada de mal, a princípio, no incentivo à leitura familiar, prática que o governo tem chamado de “literacia familiar”, em vez de usar o termo, para ele provavelmente famigerado, “letramento”. Neste caso, troca-se seis por meia dúzia, como também já afirmei na primeira crônica.
Pesquisas anteriores que desenvolvemos e orientamos com alunos de graduação em Letras e Pedagogia, desde o final dos anos 1990, nos levaram a identificar o sempre relevante papel da agência “família” no processo de formação de leitores, ao lado da escola, das igrejas, dos sindicatos, dentre outras instituições.
Ao fazer esta lista de “agências de letramento”, como a bibliografia especializada designa essas instituições, me dou conta de que falo duas palavras (duas instituições) que têm tirado o sono de muita gente. Para uns, vilão; para outros, redenção.
O sindicato é, para um governo que flerta com o fascismo (ou com o nazismo?), um horror. Já para a democracia, como sabemos, sindicatos significam a união de trabalhadores para reivindicar e assim garantir certos direitos.
Já a igreja, ou as igrejas, têm se constituído, na atual conjuntura brasileira, uma instituição bastante forte, responsável, em grande parte, pela eleição do atual presidente da República (e por conseguinte indicação de parte de outros representantes do executivo) e também do legislativo (a famosa bancada da Bíblia, a cada eleição, mais crescente no Brasil). O slogan do candidato a presidente, à época, era: “Brasil acima de tudo e Deus acima de todos”. Mas precisamos insistir: o Estado é laico, embora o próprio presidente ande afirmando: “O Estado é laico, mas eu sou cristão.”
Todos nós sabemos que cristãos são todos aqueles que seguem Jesus Cristo, fundador da Igreja Católica Romana, mas na prática, o termo cristão é mais usado para se referir aos chamados “neopentecostais”, “evangélicos” ou “crentes”, cada um usa a designação que melhor lhe convier.
Para alguém pouco afeito a práticas religiosas como eu, mas que cresceu em família católica e que procura respeitar todas as crenças, não gostaria que as coisas se misturassem (Estado e religião). Deixemos essas divagações e voltemos ao Conta pra mim.
Cada vez fica mais claro para mim que o programa é uma tentativa de implantar, aos poucos, o homeschooling, a chamada educação domiciliar, que tem como um dos seus adeptos no Brasil o senhor Carlos Francisco de Paula Nadalim, à frente da Secretaria de Alfabetização do MEC desde o primeiro ministro do governo Bolsonaro, o colombiano Ricardo Vélez Rodríguez.
De acordo com matéria publicada na Folha de S. Paulo, em 20 de março de 2019, as obras de Nadalim não aparecem em currículos de formação docente e o tal senhor não desenvolveu pesquisas sobre alfabetização nem tampouco participou de debates que influenciaram a gestão pública nas últimas décadas.
Suas ideias, no entanto, circulam na internet desde 2013, quando criou o blog “Como educar seus filhos”. Essas ideias têm agradado àqueles que combatem o pensamento de Paulo Freire, filósofo e educador brasileiro reconhecido em todo o mundo, como também têm angariado aqueles que defendem o método fônico de alfabetização.
(https://www1.folha.uol.com.br/educacao/2019/03/quem-e-e-o-que-pensa-carlos-nadalim-secretario-de-alfabetizacao-do-mec.shtml, acesso em 02 de janeiro de 2019.)
A mesma matéria da Folha de S. Paulo afirma que Nadalim rejeita os métodos global e silábico de alfabetização e considera o letramento o “grande vilão da alfabetização”. Para ele, o letramento nada mais é do que a aplicação do construtivismo ao ensino de leitura e escrita, com grande viés ideológico e político de esquerda. Que as questões ideológicas perpassam todo e qualquer processo de ensino e aprendizagem, não resta dúvida. Mas daí a dizer que o letramento (e seus respectivos estudos) está a serviço da esquerda, há uma enorme diferença.
Qual é o grande problema do homeschooling? Não têm mesmo os pais o direito de educar (e alfabetizar) seus filhos? Claro que têm. Mas não têm o direito de lhes furtar o direito de conviver com colegas de classe provenientes de famílias diferentes, com outras crenças, outras ideologias, outras posições políticas. O lado perverso da homeschooling permite aos pais resguardarem seus filhos da má influência de professores de ideias não conservadoras, afastando-os do pensamento lógico e científico, que rompe com o pensamento religioso, em que nada se questiona.
Prestem atenção, também, ao locus escolhido pelo governo para divulgar o programa, além de mídias como TV, rádio e internet. Escolheram exatamente os shopping centers: uma espécie de “templo do consumo”, a “caverna” contemporânea, como representou literariamente o conhecido escritor, ateu e socialista, José Saramago. Os modernos shoppings são frequentados diariamente por famílias de classe média média, nem tão pobres nem tão ricos, que são aquelas que o programa visa atingir primeiramente.
À primeira vista, nada há de mau em ler para os filhos. Nada há de errado em “contar histórias” lidas. Não há problema com a socialização pela leitura em casa. Mas prestem atenção: com a literacia familiar os livros podem ser escolhidos pelos pais com critérios que não sejam a qualidade literária (quantos e quais pais têm condições de avaliar a qualidade estética das obras que leem para seus filhos?), livros que não contribuam para o (re)conhecimento da diversidade social, étnica, de gênero, e de tantas outras diversidades que aquele regime que já considerávamos praticamente morto, aquele mesmo da Alemanha, ou aquele outro, lá da Itália, rechaçam completamente. “É que Narciso acha feio o que não é espelho”, como canta Caetano Veloso.
Não percam, na semana que vem, a próxima crônica sobre leitura, alfabetização e políticas públicas III: Proletramento, PNAIC e PNA – algumas semelhanças e diferenças
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