Sobre as mortes de Lorena Muniz e as marcas que se inscrevem nas corpas
“ShowME - passa a visão pra ELAS”: Em sua segunda colaboração ao Jornal Voz Ativa, Fredda Amorim expressa indignação e lamenta a morte de Lorena Muniz, mulher trans que foi abandonada inconsciente dentro de clínica em chamas em São Paulo e o domínio dos corpos em uma cultura marcada pela heteronormatividade.
Saudações de quem (ainda) está viva! O texto dessa edição de nossa coluna “ShowME - passa a visão pra ELAS” vem embebedado e atravessado por vários sentimentos. O primeiro deles foi minha participação numa conversa com alunes do curso de Pedagogia da UFMG, na semana passada, a convite do professor doutor Paulo Maia, meu genro. Conversamos sobre coletividade, antologia digital e (re)existência LGBTQIA+. A conversa foi muito produtiva, me encheu de vigor e me motivou a prosseguir com nossa missão.
Segundo, o LUTO que nos abraça todos os dias. Gostaria de dedicar essas linhas à Lorena Muniz, mais uma das manas que foi deixada pra morrer. Lorena era uma jovem transexual que estava em São Paulo para realizar um sonho e teve sua morte cerebral confirmada neste domingo (21). Segundo Tom, seu companheiro, e outras testemunhas que estavam com ela no dia de sua cirurgia, após um incêndio na clínica onde realizava o procedimento, Lorena foi deixada para trás durante a evacuação do local, exposta a grandes quantidades de fumaça.
A deputada Erica Malunguinho alerta a imprensa para o fato de que esse caso não fique isolado. E que muitas mulheres Trans e travestis são vítimas de clínicas que realizam processos cirúrgicos que não garantem a segurança e qualidade dos procedimentos. Quando se trata do caso de Lorena estamos falando principalmente sobre a institucionalização da transfobia e sobre transfobia estrutural. Agora, precisamos transformar, como sempre, nossa tristeza e luto em LUTA.
Hoje um amigo me disse: “não podemos parar, não temos esse privilégio”. De fato, não temos PAZ de existir. Como disse também o poeta Marcelino Freire: “a paz é coisa de rico, eu não sou da paz”. Precisamos organizar nossas revoltas e repensar nas estratégias que são possíveis para que os culpados sejam punidos e, acima de tudo, para que paremos de morrer, de ser deixadas para trás e condenadas.
Uma infinidade de marcas se inscrevem nas corpas como resultado de suas experiências, traumas, alegrias e desejos. Em função de estarmos, desde muito tempo, sendo categorizadas e ordenadas à partir das aparências e significados de nossa própria existência pela norma sexual binária, branca, heterossexual e cisgênera. Somos constantemente limitadas às nossas genitálias, ainda que se leve em consideração, além das marcas de gênero, aquelas de etnia e classe. Não tem como conversar sobre questões de gênero sem antes falar sobre as questões raciais e principalmente sobre racismo estrutural e de classe.
A compreensão da corpa se constrói de acordo com o meio no qual está inserida, além das posições ocupadas pelas sujeitas na sociedade. Por exemplo, as localizações de etnia e classe diferenciam a maneira com que as opressões serão vivenciadas por nós. Tendo em mente o conceito de interseccionalidade cunhado por Kimberlé Crenshaw e analisado por Carla Akotirene (2019), mulher negra maravilhosa que amo, considero essencial frisar que as vivências de opressão sempre ocorrem em relação, não havendo uma hierarquia entre elas, de modo que o seu cruzamento impacta a forma com que as pessoas acessam direitos e são contempladas pelas leis na busca por justiça. Lugares de privilegio.
Cada pequena mudança das CORPAS frente à norma redefine a representação e a importância delas nesta sociedade. Ou seja, as que são escolhidas para viver e as que são deixadas para morrer de forma literal ou simbólica. As relações de objetificação da corpa sujeita-subalterna pelo corpo social – no sentido que, quanto mais elas se distanciam da matriz branca, CISgênera, heterossexual, mais vão sendo relegadas às margens, mais estas marcações se naturalizam em nossas histórias – por serem mantidas pela cultura na qual as pessoas aprendem a enxergar nossas corpas como objetos de uso ou descartáveis, nos privam de exercer plenamente a cidadania desumanizando nossa existência.
O ambiente patriarcal e de herança colonial em que minha corpa está inserida – se me permitem o recorte: Ouro Preto - Minas Gerais, “Cidade Patrimônio da Humanidade”, turística, barroca, católica, conservadora, e NEGRA, que tem em seu calendário oficial um carnaval profano e uma semana santa sagrada (e outras manifestações importantes), além de abrigar uma universidade federal com cursos majoritariamente compostos por estudantes brancos e de classe média que não são nascidos nem criados em Ouro Preto – é imerso em tradicionalismos, pouco permeável à mudanças estruturais e com altos níveis de desigualdade.
Apesar disso, também acolhe dissidências e tem em seu histórico um curso de Artes Cênicas que evidencia, por meio de sua produção artística, as possibilidades de criação e recriação de ser. Existe neste contexto um senso comum de que tudo que é diferente, no caso, o que diverge da performatividade binária e cisgênera, ser algo pertencente ao “pessoal das artes cênicas”.
Muitas vezes eu e minhas amigas, com nossas corpas pela cidade, promovemos carnavais fora de época neste contexto barroco pelo simples fato de estarmos na rua. E nem sempre estamos em festa, mas o estado de festa tem sido sem dúvida o lugar da (re)existência.
Os espaços que não são constituídos e pensados pelas corpas são fortemente marcados pelas operações de binarismo que elegem e fixam posições determinadas e centrais, produzindo visibilidade – e também invisibilidade –, empoderando e validando relações de hierarquização pautadas em lógicas patriarcais entre os sujeitos. Mas aqui a invisibilização de nossas identidades ocorre também quando a existência de minha corpa e de minhas amigas é sempre vista com relação ao carnaval, ao grotesco, e não como legítima expressão de nossas existências cotidianas.
A nomeação e legitimação dos corpos, segundo os fatores biologicizantes + as construções sociais de feminilidade e masculinidade, leva compulsoriamente para a margem as corpas que não se encaixam nas lógicas binárias, sobretudo a partir das aparências e características corporais que compõem as maneiras com que esses sujeitos performam suas dissidências não-normativas – materializadas, via de regra, em identidades de gênero e orientações sexuais que não se enquadram na coerência ocidental do esquema sexo-gênero.
Pensar nossa existência no mundo, frente ao ditame do sistema patriarcal, torna-se regra essencial não apenas para a produção de espaços, mas para a produção da legitimidade em se ocupar, ainda que possa produzir, como efeito, a moralização dos próprios espaços, em atos reativos à nossa presença.
Confrontamos o poder estabelecido – que aqui, é a heteronorma – quando nossas corpas ocupam, criam e confrontam, ou seja, AFROntam o modelo patriarcal somente por, muitas vezes de modo intrínseco à própria produção e ocupação dos espaços, estarmos apenas presentes com nossas corpas, ainda que paradas, estanques. Tal relação não é pacífica e sem conflitos, porque a ocupação só pode ocorrer diante de algum tipo de interpelação que envolva o corpo-norma e nós como “contranorma”. Sobre isso nos fala muito bem Judith Butler.
A colonialidade do ser auxilia na manutenção das ideias que criam e perpetuam violências de caráter estrutural às pessoas vitimadas pelo legado da colonização. Desde ideias que essencializam a existência de corpas negras, indígenas, travestis até os reflexos destas violências coloniais em nossas subjetividades, que envoltas pelas normativas brancas cisgêneras, patriarcais e eurocentradas dificultam a sociabilidade e reforçam a ideia de que somos “anormais” por sermos analisadas e até mesmo validadas por uma lógica dominadora de saber, poder e ser. Quando resgatamos outras epistemologias que não partem dos dominadores, encontramos a possibilidade de existirmos em paz. Se é que um dia perteceremos a PAZ.
Deixo ao final desse encontro, algumas questões para que possamos nos mover, juntes, à reflexão.
- Quantas pessoas TRANS você conhece?
- Com quantas pessoas TRANS você convive?
- Para quantas pessoas TRANS você já foi ponte para geração de emprego e renda?
Contato com a colunista Fredda de Amorim:
[email protected] / @freddamorim
Até a próxima!
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