Professor da UFOP, Hércules Corrêa publica quarta crônica sobre leitura, alfabetização e políticas públicas

Desta vez, o professor discorre sobre o Programa Nacional do Livro Didático – PNL.

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Por Professor Hércules Tolêdo Corrêa Publicado em 05/02/2020, 21:18 - Atualizado em 05/02/2020, 21:18
Hércules Corrêa pesquisa a formação de leitores e outros temas relacionados à aprendizagem da língua escrita. Crédito- Divulgação. Siga no Google News

Chegamos à quarta crônica desta série e continuo com minhas especulações, divagações e observações sobre leitura, alfabetização e políticas públicas e hoje vou tratar do livro didático, principalmente nas áreas de alfabetização e português. Semana passada, pensava em tratar do Programa Nacional do Livro Didático e do Programa Nacional Biblioteca da Escola em uma única crônica, mas percebi que um texto só para tratar de dois programas tão importantes não era adequado. Então, semana que vem tratarei do programa de distribuição de livros literários para as escolas públicas. Vamos então ao famoso PNLD – Programa Nacional do Livro Didático.

Como mencionei na semana passada, a mídia “descobriu” que um dos decretos do final de ano, que o (des)presidente saiu canetando, reestruturou o MEC e abriu a possibilidade de que a Diretoria de Alfabetização (Baseada em Evidências) possa produzir material didático a ser usado escolas públicas de todo o Brasil. Até o momento, os livros distribuídos pelo governo eram editados por editoras particulares, avaliados e selecionados pelo PNLD. Com essa reestruturação do órgão, corremos o risco de o MEC produzir cartilhas baseadas no método fônico (e também com outras características, tais como: moralizantes; tendenciosas para certas religiões; “sem partido” no sentido de “sem PT” ou “sem marxismo cultural”, não no sentido de “sem fascismo velado” e por aí vai).

Durante as gestões democráticas do Brasil, os livros selecionados para o PNLD deveriam “contribuir para o desenvolvimento de capacidades básicas do pensamento autônomo e crítico adequadas ao aprendizado de diferentes objetos de conhecimento (memorização, observação, análise, comparação, generalização, sistematização, aplicação)” e “não apresentar atitudes preconceituosas e estereótipos, ou apresentá-los e discuti-los”, também “não apresentar proselitismo político ou religioso ou publicidade (a não ser quando se trata de estudar textos dessa esfera)”, como reza a ficha de avaliação das obras, disponível por exemplo em: https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-livro-didatico/item/2348-guia-pnld-2010, acesso em 05 de fevereiro de 2020, página 353 do Guia PNLD 2010 de Língua Portuguesa).

As equipes que faziam a avaliação dos livros eram compostas por especialistas de universidades, mas também por muitos professores da educação básica pública e até mesmo professores da rede privada, de diferentes partes do Brasil. O governo federal, com essa política de avaliação, seleção e aquisição de livros didáticos a serem distribuídos para a educação básica, tornou-se o maior comprador de livros do País e o Brasil tornou-se o nono maior mercado de livros do mundo (ver, por exemplo, a matéria http://redeglobo.globo.com/globocidadania/noticia/2013/04/brasil-e-o-9-maior-mercado-de-livros-gracas-compra-de-material-didatico.html, acesso em 04 de fevereiro de 2020).

Essa política, inclusive, foi responsável pela melhoria na qualidade de muitas obras, uma espécie de renovação do que já havia no mercado, bem como pelo surgimento de novas obras, mais atualizadas e de acordo com políticas importantes e que têm sido “demonizadas” pelo atual (des)governo, como o reconhecimento dos direitos humanos, a diversidade étnico-racial, a diversidade de gêneros, a diminuição (ou extinção) do preconceito linguístico, a valorização das diferentes variedades linguísticas da língua portuguesa, uma multiplicidade de gêneros textuais e de autores.

Para aquele leitor que tiver curiosidade, sugiro que consulte uma ficha de avaliação dos livros do PNLD, para entender melhor sobre do que estou tratando (ver o Guia do PNLD 2010 - a partir da página 243, disponível no link https://www.fnde.gov.br/index.php/programas/programas-do-livro/pnld/guia-do-livro-didatico/item/2348-guia-pnld-2010, acesso em 05 de fevereiro de 2020, que teve minha participação, inclusive, como revisor das resenhas e revisor ortográfico dos livros analisados – página 6, já que se implantava, à época, o Acordo Ortográfico).  

Logo no início deste governo, algumas mudanças no PNLD foram anunciadas, mas logo canceladas, tais como: exigência de referências bibliográficas e itens que impediam publicidade e erros de revisão e impressão (!!!) e alterações no que diz respeito à diversidade étnica da população brasileira, a pluralidade social e cultural do país, bem como referências à promoção da cultura e história afro-brasileira (!!!), quilombola, dos povos indígenas e dos povos do campo, avanços e conquistas  alcançados nos governos democráticos de diferentes partes do mundo.

Devido às enormes críticas da sociedade, o MEC logo retrocedeu e cancelou essas mudanças, mas aos poucos e “na calada” vai implantando “reformas” convenientes ao um governo conservador, misógino, racista e homofóbico. As posições de componentes do (des)governo, do presidente aos ministros, secretários e assessores, deixam os mais atentos e menos manipulados por uma certa vertente da mídia certificar-se do modo de pensar das atuais autoridades, da defesa do criacionismo (aquele que acredita piamente que o homem veio de Adão e Eva, uma alegoria bíblica, e não aceita a teoria da evolução das espécies) às palavras do presidente de que os “cada vez mais os índios são seres humanos iguais a nós”. Ouvimos direito, cara pálida???

A questão volta agora depois de o presidente da República, pouco afeito aos estudos, como é sabido por todos, criticar os livros didáticos de hoje, afirmando que têm “muita coisa” escrita, um “amontoado de coisas” e que é preciso “suavizar” esse material. O “capitão”, como é chamado pelos seus asseclas, inclusive fez referência à cartilha em que ele próprio foi alfabetizado, chamada Caminho Suave, de Branca Alves de Lima, que promovia a aprendizagem do sistema de escrita pelo método silábico (um dos métodos sintéticos, que partem da parte para o todo) e foi muito usada no Brasil até os anos 1980 do século passado.

À época o presidente aproveitou mais uma vez para “difamar” o educador Paulo Freire, reconhecido mundialmente pela sua obra e pelas suas contribuições para a alfabetização. Não acredito que o presidente tenha lido sequer algumas páginas do educador pernambucano, para criticá-lo tanto, mas não cabe discutir isso aqui.

Vale lembrar que os livros distribuídos no ano de 2020 foram escolhidos a partir de edital do governo do Temeroso, de 2017.  Mas a pergunta que fazemos agora é: quais são os limites do governo para alterar os livros didáticos?

Quando o PNLD passou a ser uma política de Estado e não de governo, comemoramos bastante, porque isso significa que o investimento está garantido, independente do governo que estiver no poder. Mas como neste país muita coisa se tornou passível de alteração de cima para baixo, sem discussão com os diretamente envolvidos com a questão, como professores da educação básica, especialistas das universidades, pais e alunos, tememos muito quando imaginamos um livro didático produzido pelo MEC ou encomendado por ele, falsamente chamado de “sem ideologia”, porque “sem ideologia(s) de esquerda” e com “flertes” ao nazifascismo, como já denunciam corajosos na mídia.

As políticas do livro didático passaram por muitas reformulações e aprimoramentos nas últimas décadas. Decreto de 1985, durante o governo do presidente José Sarney, dublê de escritor e político que nunca saiu do poder, substituiu políticas que vinham acontecendo desde os anos 1970, durante a ditadura militar.  Nessa época, buscou-se a participação do professor na escolha dos livros didáticos e a expansão da iniciativa para todo o ensino fundamental.

A partir de 1996, o MEC passou a publicar o Guia do PNLD, que avalia o material didático e serve de apoio para professores escolherem os livros. Com muito orgulho, participei de várias edições dessas avaliações, em diferentes papeis, ao lado de competentes figuras de renomadas universidades brasileiras. 

A partir de 2017, com a aprovação da Base Nacional Comum Curricular - BNCC, documento que regulamenta as aprendizagens essenciais de todos os alunos da educação básica, os livros didáticos tiveram de se adequar a essas diretrizes. A BNCC tem sido bastante criticada, por ser muito tecnicista, ter despolitizado questões complexas e ter sido aprovada após ignorar uma série de contribuições que especialistas contratados no governo democrático haviam dado. 

Para o leitor ter uma ideia do tamanho dessa política pública, informamos que, de acordo com matérias disponíveis em grandes jornais, em 2019 foram adquiridos 126 milhões de livros didáticos, 1850 títulos foram distribuídos pelo primeiro ano do (des)governo Bolsonaro e  R$1,1 bilhão foram gastos, atendendo a alunos dos ensinos fundamental e médio de escolas públicas dos âmbitos municipal, estadual e federal. Convido o leitor a consultar a matéria disponível em:https://www.nexojornal.com.br/expresso/2020/01/11/Quais-os-limites-do-governo-para-alterar-livros-did%C3%A1ticos, acesso dia 05 de fevereiro de 2020, para se inteirar mais do assunto.

Temos duas alternativas: ou nos calamos e pagamos para ver, como aconteceu com a reforma da Previdência, ou botamos a boca no trombone e exigimos aquilo que boa parcela dos envolvidos com a educação no Brasil quer: a cabeça de Weintraub, para ver o que conseguimos salvar a partir daí.

Na próxima e última crônica desta série produzida especialmente para o Jornal Voz Ativa, o professor Hércules fala sobre o Programa Nacional Biblioteca da Escola - PNBE.

As três crônicas anteriores podem ser lidas clicando nos links abaixo:

Professor da UFOP abre uma série de crônicas sobre leitura, alfabetização e políticas públicas

Sobre leitura, alfabetização e políticas públicas: Mascote do Conta pra mim visita shoppings e incentiva a educação domiciliar

“PNA, Proletramento, PNAIC – algumas semelhanças e diferenças”, pelo professor Hércules Corrêa

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