“PNA, Proletramento, PNAIC – algumas semelhanças e diferenças”, pelo professor Hércules Corrêa

Foto – Professor da UFOP, Hércules Corrêa, pesquisa a formação de leitores e outros temas relacionados à aprendizagem da língua escrita. Crédito- Divulgação.

Home » “PNA, Proletramento, PNAIC – algumas semelhanças e diferenças”, pelo professor Hércules Corrêa
Por Professor Hércules Tolêdo Corrêa Publicado em 29/01/2020, 10:05 - Atualizado em 29/01/2020, 10:23
Foto – Professor da UFOP, Hércules Corrêa, pesquisa a formação de leitores e outros temas relacionados à aprendizagem da língua escrita. Crédito- Divulgação. Siga no Google News

Na terceira crônica desta série, continuo minhas especulações, divagações e observações sobre as políticas de alfabetização e formação continuada de alfabetizadores nos últimos anos. Como o magistério dos anos iniciais, no Brasil, tem sido exercido majoritariamente por mulheres, optei por usar, aqui, os termos alfabetizadoras e professoras, na maior parte das vezes, embora saibamos que existam exceções.

O que caracteriza a Política Nacional de Alfabetização  - PNA do (des)governo atual? O que ela tem de semelhante aos programas anteriores de melhoria na alfabetização? O que ela tem de diferente do Pró-Letramento e do PNAIC?

Em uma busca rápida pelos jornais, para refrescar a memória e redigir este texto, encontro um “falatório” de “autoridades” da atual gestão do MEC, composta por nomes que nem vale a pena citar aqui, em que se menciona o Programa Nacional de Alfabetização e cita-se bastante uma tal “Diretoria de Alfabetização Baseada em Evidências”.

Algo que me chama a atenção é o uso dos termos “literacia” e “numeracia”. Já tratei dessa questão em crônicas anteriores, mas retomo rapidamente. Este atual (des)governo, que quer considerar “evidência científica” apenas um tipo de pesquisa, ou uma certa forma de fazer pesquisa, troca seis por meia dúzia ao substituir os termos “letramento” e “numeramento”, já bastante consolidados por determinados grupos de pesquisadores brasileiros, por esses termos mais utilizados em Portugal e que consistem em traduções mais literais dos termos “literacy” e “numeracy”, utilizados na bibliografia de língua inglesa.

As “evidências” que vêm sendo destacadas pelas “toridades mequianas” ou pelo “‘seu’ MEC” (como diriam as personagens da peça O inspetor geral, de Gogol), são aquelas oriundas do pensamento de pesquisadores que “flertam” com o método fônico de alfabetização. Esclarecendo ou lembrando aqui: o método fônico é aquele que ensina os sons de cada letra e a partir daí formam-se as palavras. Em geral, as crianças alfabetizadas por esse método não têm acesso imediato a textos antes de conhecerem os sons de cada letra. Das letras passam para as sílabas, depois as palavras e só então se chega aos textos pequenos, geralmente chamados de “pseudotextos”, porque muito mais preocupados em apresentar sequências de palavras mais conhecidas do que ideias que realmente possam produzir algum sentido, como os conhecidos “Ivo viu a uva” (e atualmente não podemos nem mais brincar “Ivo viu a uva e a vulva da vovó”, porque a ministra “pastora da goiabeira” vai falar que é muita obscenidade!).

O (des)governo prega que não haverá uma imposição de método (ver, por exemplo, https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/mec-quer-programa-de-alfabetizacao-apoiado-na-ciencia-mas-sem-impor-metodo/, acesso em 29 de janeiro de 2020) mas na “prática a teoria é outra”, já que a famigerada “alfabetização baseada em evidências” sempre que pode vai reiterar e defender o método fônico, já bastante questionado, datado e, com vantagens e desvantagens, como qualquer outro método. A Professora Isabel Frade, da UFMG, afirma, em texto publicado em 2005: “nos casos em que realmente há uma correspondência direta entre um fonema e sua representação escrita os aprendizes irão decifrar rapidamente, desde que entendam esta relação  e decorem essa correspondência, estas correspondências diretas seriam p e b, v e f, t e d. Essas letras representam apenas um fonema e mais nenhum outro, não oferecendo maior dificuldade na decodificação e codificação.” (FRADE, Isabel Cristina A. S. Métodos e didáticas de alfabetização: história, características e modos de fazer de professores. Caderno do Formador, Belo Horizonte: Ceale/FaE/UFMG, 2005.)    Mas no caso de letras como s, x e outras situações (dígrafos, por exemplo), a coisa complica.

Como afirma nossa grande referência em alfabetização, a Professora emérita da UFMG, Magda Soares, “é necessário lembrar ao MEC que a escolha de método de alfabetização, como também de métodos para qualquer conteúdo de ensino, é direito assegurado por lei aos professores e às escolas. Nem é preciso justificar isso com os dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) ou do Plano Nacional de Educação (PNE).” A experiente pesquisadora, do alto dos seus mais de 80 anos de idade e quase 60 de profissão, prossegue: “O subterfúgio de usar o verbo ‘recomendar’ é tão ilegal quanto seria o verbo ‘impor’, quando essa recomendação vem associada à promessa de apoio às escolas, caso a adotem. Isso nada mais é que uma manobra para seduzir as escolas públicas que necessitam de apoio do poder público – não para intervir em suas opções pedagógicas, mas para que disponham de recursos para melhoria da infraestrutura, sempre precária; para criação ou enriquecimento de suas bibliotecas e laboratórios, a aquisição de computadores ou tablets, à introdução de novas tecnologias de ensino e, sobretudo, para remuneração justa dos professores.”

Magda Soares ainda destaca: “Insiste-se em método – em como ensinar – quando o necessário é focar a aprendizagem – como a criança aprende. E há ‘evidências científicas’ sobre como a criança aprende a língua escrita geradas por várias ciências e pesquisas, não apenas pela psicologia cognitiva da leitura, privilegiada pelos que defendem o método fônico.”    (https://desafiosdaeducacao.grupoa.com.br/magda-soares-alfabetizacao-saeb/, acesso em 27 de janeiro de 2020.)

Para um governo que mais passa mais tempo no Twitter, Instagram e outras redes sociais digitais, o que se vê mesmo é muito falatório e pouca ação. Até o momento, de mais concreto que tivemos na Política Nacional de Alfabetização foi só o lançamento do “Conta pra mim”, que tenho criticado bastante nesta série. Ainda não vi acontecer efetivamente uma política de alfabetização e formação continuada de professoras alfabetizadoras como foram os programas Pró-Letramento e PNAIC.

Recupero aqui, para mostrar a você, leitor ou leitora, um pouco da minha trajetória como profissional envolvido com a área, já que (infelizmente!) nunca fui um alfabetizador.

Em 2010, a Universidade Federal de Ouro Preto foi convidada a integrar a Rede Nacional de Formação Continuada como uma das instituições responsáveis pela formação em serviço de professoras alfabetizadoras de Minas Gerais, tarefa que até então era executada, no âmbito estadual, pela Universidade Federal de Minas Gerais, por meio do programa Pró-Letramento. A UFOP capacitou, em dois anos, representantes de alfabetizadoras de 41 municípios situados no sul de Minas, abrangendo um total de 1.434 professoras dos anos iniciais do Ensino Fundamental. Capacitamos 77 tutoras que foram replicadoras dos estudos sobre alfabetização em linguagem e em matemática nos seus respectivos municípios. À época, o ministro da Educação era Fernando Haddad, que ocupou a pasta entre 29 de julho de 2005 a 24 de janeiro de 2012.

Ao final de 2012, a proposta de formação nos moldes do Pró-Letramento foi entendida como superada pelo MEC. Havia o desejo de avançar a partir da experiência obtida e propor uma formação que fosse capaz de convergir as diferentes políticas já existentes voltadas para os anos iniciais do Ensino Fundamental. Foi nesse contexto que foi implantado o PNAIC – Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa. Neste momento, abandona-se a palavra “letramento” do nome do programa e retoma-se a palavra “alfabetização”, enfatizando-se, ainda, a “idade certa”. A essa época, o ministro da Educação era Aloízio Mercadante, que ocupou o cargo entre 24 de janeiro de 2012 a 02 de fevereiro de 2014. Entendíamos a mudança no nome do programa motivada, em grande parte, pela impressão da marca de um novo ministro.

De acordo com os documentos oficiais, o programa deveria assegurar a alfabetização e educação de qualidade a todas as crianças até os oito anos de idade, ao final do 3º ano do Ensino Fundamental. Além da linguagem e da matemática, o PNAIC se responsabilizaria, também, pela inclusão das ciências na política de formação. Por três anos minha colega Gláucia Jorge e eu estivemos à frente desses programas de formação de professores, o que nos trouxe muita experiência e nos possibilitou conhecer mais de perto o trabalho realizado pelas alfabetizadoras da região em que atuamos. Também foram muito produtivos os encontros com coordenadores dos programas em todos os estados brasileiros, momento em que refletíamos sobre os trabalhos que estavam sendo realizados e também trocávamos nossas experiências. Após esse período, deixamos a coordenação do projeto para cuidar de outras tarefas acadêmicas. Entretanto, como professores e pesquisadores da área, continuamos acompanhando dissertações e teses a respeito do assunto até o presente momento.

O Pró-Letramento e o PNAIC se constituíram então, em políticas públicas de promoção da alfabetização do governo democrático dessa época, que durou até o golpe, oficialmente chamado impeachment, aplicado à presidenta eleita Dilma Roussef. Em 2019, com a eleição de um governo da extrema direita, implantou-se a chamada Política Nacional de Alfabetização – PNA, a qual procuramos descrever (e criticar) nos primeiros parágrafos.

Para não dizer que até o momento pouca coisa se viu sobre a tal PNA, a mídia esses dias “descobriu” que um dos decretos do final de ano, que o (des)presidente saiu canetando, reestrutura o MEC e abre a possibilidade de que a Diretoria de Alfabetização (Baseada em Evidências) produza material didático a ser usado nas instituições de ensino de todo o Brasil. Até o momento, os livros distribuídos pelo governo eram avaliados e selecionados pelo Programa Nacional do Livro Didático - PNLD (política que será tema da próxima crônica). Com isso, corremos o risco de o MEC “mandar produzir” cartilhas baseadas no método fônico (e também com outras características, tais como: moralizantes; tendenciosas para certas religiões; “sem partido” no sentido de “sem PT” ou “sem marxismo cultural”, não no sentido de “sem fascismo velado”... e por aí vai).

Se o governo tampão de 2016 a 2018 foi “temeroso”, coisa pior estava por vir: (des)governo, em que cai ministro colombiano-brasileiro que afirma “universidade para todos não existe”; pede a escolas que filmem alunos cantando o hino nacional e atribui ao cantor e compositor Cazuza a frase “Liberdade é passar a mão no guarda” e entra ministro   que diz que “universidade só faz balbúrdia”, “tem plantação de maconha” e confunde Kafka com kafta, para ficar em apenas três bobaginhas; cai secretário de cultura neonazista e entra a Viúva Porcina latifundiária e que acha “bonitinho” o presidente fazer piada machista e homofóbica, afinal, ele é “um doce de pessoa”.

Estamos perdidos? Ainda não, se reagirmos. E já passou da hora!

A próxima crônica do professor Hércules Corrêa sobre leitura, alfabetização e políticas públicas, a quarta da série exclusivamente escrita para o Jornal Voz Ativa, trata do Programa Nacional do Livro Didático e Programa Nacional Biblioteca da Escola. Não deixe de conferir.

As duas crônicas anteriores podem ser conferidas clicando nos links abaixo:

Professor da UFOP abre uma série de crônicas sobre leitura, alfabetização e políticas públicas

Sobre leitura, alfabetização e políticas públicas: Mascote do Conta pra mim visita shoppings e incentiva a educação domiciliar

Deixar Um Comentário