“Memória amoris”
Falar do passado é tocar numa questão filosófica muito abrangente e de grande relevância que é o tempo. Santo Agostinho (filósofo e teólogo do século IV-V), no livro XI das “Confissões”, reconhece a dificuldade para se definir o tempo, mas o compreende como a maneira humana de se relacionar com as realidades que passaram, que passam e que ainda não chegaram. Segundo ele, as realidades criadas estão sujeitas e submetidas à relação de sucessão temporal e a percepção humana destas realidades passa, necessariamente, por esta experiência temporal. O passado, apesar de não existir mais (objetivamente falando), existe no tempo presente por força da memória; o futuro, apesar de não existir ainda (objetivamente falando), existe no tempo presente por força da expectativa e o presente torna-se pretérito a cada instante, é uma percepção imediata do que ocorre. Assim afirma Santo Agostinho:
“Mas talvez pudéssemos dizer apropriadamente que ‘existem três tempos: o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras’. Pois os três estão de alguma maneira na alma e eu não os vejo em outro lugar: o presente das coisas passadas é a memória, o presente das coisas presentes é o olhar, o presente das coisas futuras é a expectativa” (Confissões, livro XI, cap. 20, parágrafo 26). Neste artigo, interessa-me tratar o passado como memória.
Entendendo o passado como algo que não existe mais objetivamente, mas que está na alma humana como memória, Agostinho considera esta faculdade como um modo importante da pessoa humana relacionar-se consigo mesma e com a realidade que a cerca. Segundo Amedeo Cencini, renomado psicólogo italiano, existem vários tipos de memórias (modos como a pessoa compreende e sente o passado) que interferem positiva ou negativamente no modo como cada indivíduo humano lida com o presente e mira o futuro. Quero chamar a atenção para três tipos de memórias e as consequências destas na vida do ser humano: a memória lamentosa, a memória ressentida e a memória reconciliada.
A memória lamentosa é própria do estilo de quem olha o passado garimpando e pincelando somente, ou sobretudo, as experiências negativas, os acontecimentos ruins e as realidades traumáticas da vida. A pessoa de memória lamentosa se sente vítima de um processo triste e penoso da vida e, geralmente, passa a existência remoendo internamente fatos pesados do passado que a impedem de caminhar com mais leveza e serenidade no presente e de sonhar com um futuro mais promissor. É uma memória doente e dolorosa que, em casos mais radicais, é acompanhada de profundos sofrimentos psíquicos e dores de origem psicossomáticas. É uma memória paralisante, que rouba da pessoa a consciência do seu valor, da sua dignidade e da sua responsabilidade pessoal sobre a história construída. O passado é visto (e sentido) como desastroso e injusto, tornando-se álibi para justificar o presente e pretexto para desresponsabilizar quanto ao futuro.
Outro tipo de memória doente é a memória ressentida. Ela é própria da pessoa que recorda obstinadamente das ofensas recebidas ao longo da existência. É uma memória dura, conflituosa, dolorosa, que a impede de experimentar a força libertadora do perdão. Não vivemos numa sociedade ideal ou em contextos experienciais totalmente positivos, com ausência completa de incidentes e traumas. Por isso, cada pessoa deve entender e aceitar que não há história perfeita, pais perfeitos, amigos perfeitos e vida perfeita e que terá sempre algo a perdoar aos outros, exatamente porque as relações humanas são marcadas por inúmeras imperfeições. O problema é que quem possui memória ressentida não consegue assimilar e aceitar estas inevitáveis realidades humanas.
O que cura uma memória ressentida é o perdão. A pessoa de memória ressentida deve aprender a perdoar e aceitar que é normal o negativo e o imperfeito na sua história. Aquele que, de fato, se reconcilia com seu passado e com as pessoas - inevitavelmente limitadas e imperfeitas - que fizeram parte da sua vida, consegue colher também os aspectos positivos do que foi vivido e descobre que a experiência geral da sua história supera os aspectos negativos. Ao contrário, quem não se reconcilia com seu passado e as figuras significativas desse, leva dentro de si rancores e ressentimentos que o impedem de gozar o bem recebido e terminam por alimentar uma perigosa raiva, às vezes, até vingativa. Esta memória geralmente está bloqueada pelos ressentimentos e isso a impede de viver bem o presente e abrir-se para as experiências futuras. A pessoa que tem memória lamentosa e/ou ressentida deve buscar a cura que, na verdade, é a cura dos sentimentos negativos do passado, revisitando-os de modo pacífico e equilibrado.
O último tipo de memória é a memória reconciliada, também chamada de memória amoris. É o tipo de memória curada de seus muitos males: pessimismos, rancores, ressentimentos, lamentos, traumas, dores e etc. Ter memória reconciliada é voltar com olhar benevolente sobre o próprio passado, reconhecendo os seus aspectos negativos, mas também acolhendo o amor recebido como dom. É uma memória sadia. Esta memória deixa no coração a consolante certeza de ter sido amado por Deus e por tantas mediações humanas do seu amor. É um amor que reconstrói o passado, toma as suas inevitáveis feridas e reconcilia-se com elas. Reconciliar-se com a própria história ou curar a memória é um processo lento, progressivo, penoso e sofrido, mas muito necessário para a saúde integral do ser humano. Dependendo da situação, para se conseguir esta cura, é preciso recorrer a auxílios especializados. Quem consegue reconciliar-se com o seu passado, desfruta melhor o presente e cria condições favoráveis para redesenhar o futuro.
E você? Que tipo de memória cultiva da sua história? Lamentosa? Ressentida? Tomara que seja reconciliada! Como se pode perceber, o primeiro inimigo que a pessoa humana enfrenta não está fora, mas dentro dela mesma: é a sua história, o seu passado sofrido que, muitas vezes, tende a ignorar, hostilizar ou lutar contra ele. O primeiro perdão que deve oferecer diz respeito à sua própria história que supõe, inclusive, perdoar os próprios erros outrora cometidos.
Pe. Edmar José da Silva
Deixar Um Comentário