Os Máscaras em Ouro Preto, nas Lutas e Festas do Século XVIII

Não perca mais uma viagem na História na coluna 'FRAGMENTOS', com Carlos Versiani.

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Por Carlos Versiani Publicado em 16/02/2024, 10:32 - Atualizado em 16/02/2024, 10:32
Foto do grupo Os Máscaras, na Praça Tiradentes, em 1996. Crédito — Reprodução. Siga no Google News

Desde os tempos mais antigos, o homem sempre utilizou das máscaras em sua vida comunitária ou social. Há cavernas da era paleolítica onde já se acharam inscrições de máscaras, e pessoas de máscaras. Mas o sentido primitivo da máscara, até hoje preservado em muitos povos indígenas, está associado aos rituais de comunicação com as narrativas míticas, religiosas. Assim, as máscaras não possuíam o significado atual de representação, ocultamento ou farsa. Quando, em um ritual, alguém colocava a máscara de algum ser da natureza, fosse na África antiga ou entre os indígenas da América, ele magicamente incorporava em si a força ou espírito daquele ser mítico inscrito na máscara, participando assim da comunicação ritual com o sagrado.

Em muitas comunidades ditas primitivas observa-se também o uso de máscaras enquanto adorno e enquanto objeto de adoração, colocada em um local sagrado para a aldeia, como num altar. É o exemplo dos totens, feitos a partir de um tronco de árvore, que denotam também figuras humanas. Aliás, as máscaras, nestas comunidades, nem sempre exibem rostos humanos, mas animais, ou figuras zoomorfas.

Quando as sociedades se tornaram mais complexas, e as pessoas passaram a não viver mais sob um mesmo prisma mítico ou religioso, a arte passou a ter mais o sentido de imitação e representação, assim como de expressão subjetiva do artista. E uma das primeiras sociedades em que as máscaras adquiriram o sentido de persona, de representação teatral de um personagem, com a imitação de sentimentos e expressões humanas, foi a Grécia Antiga, do século VI antes de Cristo, onde se originou o gênero da Tragédia.  

A Tragédia nasceu a partir de uma festa em culto a Dionisius, Deus do vinho e da fertilidade, que opôs um ritual sensual e instintivo à racionalidade característica da sociedade grega. Esta festa, no princípio, contava com sacrifícios e o uso ritualístico de máscaras de bodes (na língua grega, bode é tragoes). Havia um coro que entoava hinos em louvor a Dionisius, mas em certo momento houve a separação de um dos componentes do coro e este seria o primeiro ator (hipocrités, aquele que finge ser). A partir daí a tragédia se desenvolveu, até se estruturar na forma clássica como a conhecemos, no século V A.C, tendo a máscara como suporte básico da representação.                                                              

A máscara na tragédia grega, assim como a própria representação em si, não perdeu totalmente o seu sentido religioso, sempre ligado à mitologia, à moral e à virtude dos homens na terra. A comédia também surgiu, para ridicularizar as fraquezas humanas. E o drama satírico, tendo por motivo a vida no campo. Havia 28 tipos de máscaras trágicas no teatro clássico grego, 48 máscaras cômicas e 4 máscaras do drama satírico. As máscaras eram envoltas por uma peruca, e possuíam uma abertura na boca, com uma espécie de tubo, para aumentar a intensidade da voz. O teatro grego, impregnado de música e poesia, não era um teatro de movimento, que utilizasse da expressão corporal como forma de representar. Os movimentos eram lentos e arrastados. Os atores usavam coturnos, sapatos com saltos de 20 cm de altura, e túnicas até os pés, bem largas nos ombros, e adornadas conforme a hierarquia do personagem representado.

Atravessando muitos séculos, vamos reencontrar a máscara no teatro do renascimento, só que utilizada sob formas e contextos completamente diferenciados. É a Comédia Dell’Arte, teatro característico da renascença italiana, nos séculos XV e XVI. Era um teatro itinerante e utilizava a rua como palco, em cenários improvisados. A máscara aí aparece como representação de personagens típicos da sociedade renascentista. E como elemento brincante. Os atores incorporavam totalmente a máscara do tipo que representavam, passando a serem confundidos, nas suas andanças, com os próprios personagens. Esta incorporação era tão consciente que as peças não eram ensaiadas a partir de um texto específico. Eram improvisações que aconteciam a partir de um pequeno roteiro pré-estabelecido. A máscara-persona fazia o resto.

A máscara se popularizou como objeto cênico e carnavalesco pela Europa a partir da Itália. São muito famosas as máscaras do carnaval de Veneza. Consta que ainda no século XVIII, no ano de 1773, estavam ativas, em funcionamento, 12 lojas de máscaras na cidade de Veneza, a maioria feita de papel maché.[1] No Brasil, desde o período colonial, se vê essa utilização festiva e cênica das máscaras. No Rio de Janeiro, considerado berço do samba e do carnaval brasileiro, pelo menos desde o século XVIII já se realizavam, entre a população mais pobre, as brincadeiras chamadas entrudos, na véspera da quaresma. E neles, já havia a presença de mascarados.

Em Ouro Preto, na antiga Vila Rica, a máscara não era usada apenas como entretenimento e objeto cênico. Em muitos movimentos e rebeliões há o registro da atuação de pessoas mascaradas. O historiador Diogo de Vasconcelos, em sua História Antiga de Minas Gerais, informa que no dia 28 de junho de 1720, no antigo Morro do Ouro Podre, local então mais habitado de Vila Rica, doze mascarados se juntaram a oitenta negros armados, e desceram ao Monte de Santa Quitéria, atual Praça Tiradentes, para proclamar a todo o povo de Vila Rica a rebelião, contra a instalação das casas de fundição do ouro, que fora determinada pelo governador Conde de Assumar. Os máscaras, arrancando das portas os editais do governo, e imitando a voz e os gestos do Conde, gritavam à turba:  “Que queres, meu povo? Queres justiça?” E despedaçavam os editais, lançando-os aos ares, para delírio da multidão.[2]

Mas a referência mais constante da atuação dos máscaras em Ouro Preto se vê em ocasiões festivas.  No grande "Triumpho Eucharistico" de 1733, festa de inauguração da nova Matriz do Pilar, temos notícias da participação dos "máscaras", que por vários dias andaram pelas ruas anunciando ao povo a solenidade, formando, nas palavras do cronista Simão Ferreira Machado, um "aprazível objeto de vista nas diferenças do traje", e "na galantaria das figuras, assunto de riso, e jocosidade".[3]   Em 1748, eles também aparecem em "varias farsas" apresentadas no "Aureo Throno Episcopal", festa comemorativa pela chegada de Dom Frei Manuel da Cruz, primeiro bispo de Mariana, espalhando ao povo "graciosos bandos, e poesias".[4]  

Já em 1786 estaria bastante disseminado pela população o "uso de máscaras" em festividades. Os editais para as festas organizadas em Vila Rica, em comemoração ao  casamento dos príncipes infantes de Portugal, não aludem à manifestação como prática isolada de alguns prendados, ou como atividade obrigatória remunerada. Apenas liberam a diversão para quem quisesse sair mascarado pelas ruas, "franqueando-se a liberdade de dois meses de Mascaras". E eles estavam em todos os lugares, onde houvesse gente e festa, inclusive no próprio teatro público, e nem sempre eram bem comportados. Precavidos, os camaristas ordenam haver "por muito recomendado o sossego, e quietação dos mesmos[5] Máscaras em todos os concursos que fizerem aos espetáculos públicos de touros, cavalhadas, óperas, e passeio." Será que estes atores mascarados costumavam respeitar mesmo o "sossego e quietação" recomendados pelo Senado?

É Tomaz Antônio Gonzaga quem recupera um momento precioso da atuação desses Máscaras, na mesma festa de 1786, trazendo-nos  a imagem límpida e instantânea de "um máscara prendado". Primeiro, ele se aproxima do governador Cunha Menezes, declamando e executando "vistosos passos". Mas o governador "fanfarrão", gostando da brincadeira, não se satisfaz. Pede que imite o Bispo, D. Pontével, e um outro general, provavelmente seu antecessor no governo de Minas, D. Rodrigo de Menezes. Como bom ator, o Máscara pratica bem a arte de imitar, para deleite do governador:

Manda sim, que arremede um nosso Bispo;
Que arremede também o modo, e gesto
De um nosso General. São estes momos
Os únicos, que podem comovê-lo
No público a mostrar risonha cara.[6]

As máscaras seguiram então pelos séculos, animando as festas e os carnavais de Ouro Preto. No ano de 1995, mostrando minhas pesquisas sobre os Máscaras ao grande artista-artesão Petrus, especialista na arte da confecção de máscaras em couro, ele propôs que resgatássemos, na Ouro Preto do final do século XX, a atuação dos Máscaras do século XVIII. Assim, criamos uma oficina na FAOP, denominada Os Máscaras, na qual Petrus ensinava aos jovens a fazerem máscaras de couro, e eu ministrava aulas de Teatro com Máscaras. Assim, a partir desta oficina, conseguimos (re) criar o grupo Os Máscaras, que atuou em inúmeras manifestações e eventos, tanto em Ouro Preto quanto Belo Horizonte. Também foi criado o grupo dos mascaradinhos, com a valiosa participação da artesã Janaína, filha de Petrus, e da Suzana Macedo, de Lavras Novas.

Ao grande amigo e guru Pedro Arcângelo Evangelista, o eterno Petrus, dedico este pequeno artigo. E que a sua arte do couro e das máscaras continuem dando frutos, nessa festiva e carnavalesca cidade monumento mundial.

Foto - Reprodução / Arquivo pessoal.

Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro. 


[1] TINELLI, Silviana.História das máscaras de Veneza. Disponível em:  https://www.silvanatinelli.com.br/arte-artesanato/historia-das-mascaras-de-veneza/ Acesso em 11/2/2024

[2] VASCONCELOS, Diogo de. História Antiga de Minas Gerais. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1974.

[3] MACHADO, Simão Ferreira. Triumpho Eucharistico. In: RAPM, Vol. IV, 1899, p. 999.

[4] RAPM - Revista do Arquivo Público Mineiro, Ano VI, 1901, p. 380.

[5] APM – Arquivo Público Mineiro, CMOP, cód 112-A, fls. 154 a 155v

[6] GONZAGA, T. Antônio. "As Cartas Chilenas". In: OLIVEIRA, Tarquínio. As Cartas Chilenas: fontes textuais. São Paulo: Ed. Referência, 1972. Carta 6a,versos 289 a 293

Um Comentário

  1. Geraldo Baltazar Ferreira ( Auê ) 16/02/2024 em 15:05- Responder

    Meu Deus do céu!
    Parece que eu entrei numa máquina do tempo.
    Aquele 2º rapaz agachado da esquerda pra direita sou eu com meus dezesseis aninhos.
    Que saudade dessa época, quando frenquentei a FAOP no grupo criado por Carlos Versiani e Pétrus.
    Orgulho de ter feito parte dessa história. ♥️🎭

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