Amigos, Amigos, Negócios à Parte: Uma Negociação Mineira em 1783

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Por Carlos Versiani Publicado em 29/01/2024, 11:16 - Atualizado em 29/01/2024, 16:51
Negociante de escravos, Jean Baptiste Debret (1825). Siga no Google News

Muito se fala, na historiografia mais recente sobre o período colonial brasileiro, das redes clientelares, que abrangiam vários segmentos sociais, em negociações feitas também por laços amizade, mas envoltas sempre por interesses econômicos particulares.  É certo que essas redes existiam. Mas na Capitania de Minas Gerais vislumbrava-se um caráter muito particular relativamente às formas de negociar. Na verdade, os mineiros, individualmente, viviam negociando, eram excelentes negociadores, como aliás seria cristalizado pela tradição oral ou folclórica, que busca caracterizar ou identificar o típico mineiro. O termo “negócio”, inclusive, usado no sentido de qualquer “coisa”, é tão próprio da cultura mineira quanto o “trem” ou o “uai”.  E os mineiros negociavam muito visando apenas a si próprios, independentemente de qualquer amizade ou qualquer rede a que pudessem pertencer. 

Trazemos aqui um documento extraído dos arquivos do século XVIII[1], que demonstra, claramente, como o mineiro efetivamente era, desde aquela época, um grande negociador e sabia muito bem separar os seus negócios das suas amizades Trata-se de um pedido de empréstimo de Jerônimo de Barros ao Capitão João Baptista dos Santos Araújo[2], de 120.000 réis, em 18/11/83:

"Se for a juros farei hipoteca dos escravos, que vossa mercê me ordenar, pois vossa mercê os conhece todos, e se for a [vista?], lá está em Catas Altas o Crioulo Manuel, que o Salvador pode ir buscar; e entregar a vossa mercê; e se for necessário mais, com aviso de vossa mercê os remeterei..."

Salvador, filho “natural” de Jerônimo, provavelmente fruto da relação do senhor com uma escravizada, foi incumbido pelo pai de fazer a negociação do empréstimo com o Capitão João Baptista. Oito dias depois, acusa o recebimento do empréstimo: "Em virtude desta Carta recebi cento e seis oitavas para entregar a meu Sr. hoje. 26 de Novembro. Morro de N. S. do Remédio: Salvador de Barros”.[3] Negócio fechado, Jerônimo escreve em 15/12/83 agradecendo ao capitão, e já começando a “enrolar”:

"Pelo meu mulato Salvador recebi as cento e seis oitavas que [U1] vossa mercê me fez mercê mandar para eu remediar a minha necessidade, e para pagamento delas lhe remeto o moleque Caetano de Nação Angola; e se por algum acontecimento ele não chegar lá junto com o Salvador que o vai entregar a vossa mercê, irá o João; e aceito a mercê, que vossa mercê me faz, de dizer que a todo o tempo que eu tornar a vossa mercê o seu dinheiro me entregará não só este, mas tão bem o outro". (Grifo nosso)

Vejam, além de não ter entregado o “Crioulo Manuel”, como prometido na primeira carta, Jerônimo deixa subtendido que, “por algum acontecimento”, é possível que o “moleque Caetano”, agora a ser enviado, não chegue ao endereçado.  Se isso acontecer, diz, mandará outro escravizado, o João. Ainda não contente, Jerônimo continua  matutando, matutando, e acaba mandando outra carta, demonstrando melhor toda sua “habilidade” em negociar:

"Vai o Salvador entregar a vossa mercê o Caetano para pagamento das ditas cento e seis oitavas, (...) e não vai o João que eu comprei ao amigo Sr. Silvestre que Deus tenha em sua gloria: porque com o Caetano fica vossa mercê mais bem servido. Tenha vossa mercê a bondade de me mandar a José Mulato, pelo Salvador: porque careço dele para me fazer umas camisas, que as minhas costureiras estão doentes, e como eu ainda não sei se ele está, ou não culpado, quero que ele entre de noite e hei de tê-lo escondido”.

 Quer dizer, não manda como parte do pagamento, ou hipoteca, o João, como aventado antes, com a desculpa esfarrapada da amizade com o senhor de quem o comprou. E ainda pede ao amigo credor outro escravizado, ou agregado, o “José Mulato”, que seria costureiro, com a desculpa de que as suas costureiras estariam doentes. Este José Mulato talvez estivesse foragido da justiça, razão pela qual o receberia apenas de noite, e às ocultas.  No fim da mesma carta, ainda arranja boas desculpas pela demora e por não mandar umas couves que o amigo teria pedido:

“Não foi mais cedo o Salvador, porque a Mula chegou manca, vossa mercê perdoe esta demora, e a chuva de dia e de noite de toda esta semana não tem dado lugar pra ir colher couves (...) Deus permita dar-me forças para eu poder ir à sua honrada e amada presença para ter a consolação de lhe falar antes de morrer".    

A última frase da carta de Jerônimo, que estaria já muito adoentado, presta uma deferência poética ao amigo, fazendo-nos certificar a aplicabilidade do ditado à realidade social da capitania de Minas Gerais: “negócios, negócios, amigos à parte”:

                                               ------“-------

Muito mais do que o caráter jocoso ou anedótico que possamos ter imprimido a este texto, os documentos descritos revelam uma outra realidade da sociedade mineira colonial, muito mais dura e nada risível, relativa aos escravizados que não possuíam qualquer direito ao seu corpo ou ao seu destino, sendo usados como moedas de troca ou mercadoria, em benefício dos negócios dos seus senhores. Assim, sob as redes de sociabilidade dos administradores locais, e os seus negócios, estavam aqueles que com sua força de trabalho produziam toda a riqueza com que seus senhores negociavam, e eram eles próprios os bens e mercadorias a servirem para pagamento ou hipoteca dos negócios realizados.


Foto - Reprodução / Arquivo pessoal.

Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro. 

[1] Manuscritos consultados na Casa dos Contos, Arquivo Judiciário, rolo 2111. Aqui adaptados para a gramática e ortografia atuais.

[2] O capitão João Baptista dos Santos e Araújo, no governo de Bernardo Lorena (1797-1803 adquiriu a patente de Tenente Coronel. Além de grande proprietário de terras, era também cartógrafo e residia à época no distrito de Santa Rita Durão, pertencente a Mariana. Quanto a Jerônimo de Barros, não temos ainda certeza de onde habitava, mas com certeza era em localidade próxima à do Capitão João Baptista, dada a ligeireza da correspondência trocada.

[3] A ermida de Nossa Senhora dos Remédios, no alto deste morro, estava localizada no Fundão de Cintra, então pertencente a Mariana, A ermida pertencia ao Capitão João Baptista dos Santos Araújo, que tinha propriedades na região.  http://www.projetocompartilhar.org/Familia/Horta.htm


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