Agradeço ao Jornal Voz Ativa a oportunidade de compartilhar essas lembranças. São registros de uma época antiga e, ao mesmo tempo, bem recente, se considerarmos que na trilha da alma o compasso do relógio é outro. Espero que curtam!
Morávamos na Gonçalves Dias, próximo ao DOPS, o Departamento de Ordem Política e Social, e a vizinhança era bem agitada. No começo dos anos 60, eu era bem pequeno, mas guardo ainda uns flashes de lembranças de agrupamentos no portão da nossa garagem e pessoas correndo, fugindo dos cassetetes da polícia.
Nossa casa fazia divisa com a fazendinha dos Libânio, um imenso pomar no coração de Belo Horizonte. Poucos arriscavam pular o muro daquele quintal pra roubar as tentadoras goiabas, mas não por causa da Dona Celeste, a proprietária, que era muito boazinha. Quem botava banca no terreiro era um galo índio. Esse sim, era uma fera! Corria atrás da gente riscando no ar as esporas afiadas no canivete pelo Seu Aristides, o avô. Quando éramos chamados pra brincar lá, só colocávamos o pé pra dentro depois que a Dona Celeste avisava: “Podem entrar, o galo está preso”.

Do outro lado de casa, tinha um prédio, um dos poucos da região. E, com piscina! Esse muro a gente pulava sem dó pra dar um mergulho sempre que o porteiro do edifício vacilava. Dois moradores desse prédio eram assíduos frequentadores lá de casa também: Marco Antônio Araújo e seu irmão, Alexandre, filhos do Seu Miguel e da Dona Lígia, pais da menina Paula também. Nossas famílias até viajavam juntas para o Espírito Santo, nas férias. Nesse tempo, meu pai tinha uma vemaguet e o seu Miguel tinha uma caminhonete. Eram mais de vinte horas de viagem, de Belo Horizonte a Guarapari, passávamos pelo Estado do Rio, pelo caminho complicado do chamado “Morro do coco”. A jornada seguia em caravana, só no nosso carro eram seis passageiros! Eu, o caçula do grupo, ía sentado na frente da vemaguet, numa cadeirinha de palha adaptada com um penico embaixo. Tudo corria bem, desde que nenhum dos veículos atolasse, o que acontecia frequentemente. Aí, era preciso dormir na estrada e esperar até o dia seguinte, quando um trator chegava e retirava as intrépidas famílias da lama.
Marco era divertido mas suas brincadeiras, às vezes, tinham requintes de malvadeza, característica comum nos jovens daquela época. No meu aniversário de cinco anos, ele levou uma caixa inteira de chicletes Ping Pong, mas o presente foi rapidamente confiscado por minha mãe. Ela tinha medo que eu engasgasse, pois além de muito grudenta, a guloseima era grande demais para crianças da minha idade. Minha mãe também pediu que ele não comentasse o assunto, pois sabia que eu ía aprontar um escândalo para colocar as mãos no presente. Marco atendeu prontamente o pedido e, durante toda a festa, não falou nada. Mas, no final da festa, não resistiu e sussurrou pra mim, no pé do ouvido: “Trouxe uma caixa de chicletes pra você, ta com a sua mãe, ela guardou”. E foi embora, rindo à beça. Pelo que sei, ele e meus irmãos ficaram na porta, de longe, curtindo ouvir o meu berreiro.
Marco Antônio Araújo tornou-se um músico genial, conceituadíssimo, que fez história misturando estilos que vão do barroco ao rock progressivo. Eu, adolescente, sempre ganhava ingressos para os seus shows no La Taberna, uma casa de espetáculos do espanhol Carlos Carretero. Sua banda contava com a participação de seu irmão, Alexandre Araújo, grande músico também. Alexandre é reconhecidamente o pioneiro do Blues em Minas Gerais, um verdadeiro guru da guitarra. Ele até chegou a tentar me ensinar a tocar violão, porém, não obteve sucesso nessa missão impossível Afinal, eu realmente não tinha vocação nenhuma para a música.
Das inúmeras histórias com Alexandre, a lembrança mais antiga que encontrei no baú envolve o fato que ele não conseguia controlar o riso quando via alguma desgraça. Certa vez, meu irmão, Billy, quebrou o braço, quebrou feio, de entortar. Alexandre, às gargalhadas, teve que pular o muro lá de casa pra fugir. Meu irmão, irado, mesmo de braço quebrado, queria dar uma sova no amigo.
Naquela época, tínhamos em casa um papagaio, o Valcrêus, e a onda da criançada era brincar de dar sementes de girassol para ele. Alexandre também tinha um, o Lourinho, só que este era temperamental. Aceitava sementes só das mãos do dono e as pegava com carinho. Certa vez, meu irmão arriscou oferecer-lhe o petisco, porém, o papagaio lascou-lhe foi uma pregada no nariz. Bicada de papagaio é violenta, quase arrancou pedaço! Alexandre só faltou rolar no chão de tanto rir!
Marco Antônio partiu cedo, aos 36 anos. A notícia de sua morte, em 6 de janeiro de 1986, Dia de Reis, chegou como uma bomba, pelo rádio do carro, numa viagem de volta de São Tomé das Letras. Comigo estava a minha melhor amiga, prima-torta, Deborah Cheyne, que estava aniversariando naquele mesmo dia. Debinha, mais tarde passou a se dedicar ao universo musical também. Tornou-se violista da Orquestra Sinfônica Brasileira e até presidente do Sindicato dos Músicos Profissionais do Rio de Janeiro.
Apesar da despedida precoce, Marco deixou larga contribuição para a nossa música brasileira: gravou inúmeros discos, todos lindíssimos, e compôs a trilha sonora do balé Cantares, a terceira montagem do grupo Corpo, creio eu. Essa eu tive a honra de acompanhar toda a produção, bem de perto.
Importante lembrar que ainda existem várias partituras inéditas do compositor que merecem ser resgatadas e divulgadas, urgente!
“Os gregos afirmavam que a alma habita um mundo diferente, descomplicado, e de lá consegue contemplar a verdade absoluta. Por isso ela foi aprisionada no baú dos sentidos, onde só as sombras da realidade, as lembranças podem ser avistadas.
E aqui estou, mergulhado no baú da alma, resgatando encontros (e desencontros) com pessoas que passaram na minha vida e influenciaram minha forma de ver e decifrar o mundo atual.”
O Autor
Victor Stutz é jornalista e escritor, nasceu em Belo Horizonte e mora em Ouro Preto, MG. Tem dez livros publicados. É autor de “O Fantasma da Máscara”, texto teatral que recebeu a “Menção Altamente Recomendável” pela Fundação Nacional do Livro Infantojuvenil e 5 indicações para o prêmio Coca-Cola Femsa de Teatro.
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