Tenho refletido muito sobre um assunto que, geralmente, as pessoas evitam, maquiam ou camuflam: a morte. Talvez seja pelo fato desta realidade existencial ter se tornado notícia cotidiana nos jornais do mundo inteiro por causa da disseminação do novo coronavírus. Diante deste cenário atual, a morte parece ser uma realidade próxima, uma ameaça constante. Não há como não pensar nela em tempos tão desafiadores.
A morte pode ser refletida e analisada sob vários ângulos ou perspectivas: biológica, metafísica, religiosa ou existencial. Alguns a consideram como um fenômeno biológico que pode ser atestado através dos procedimentos científicos; outros a consideram como aniquilamento ou fim permanente da vida; outros ainda a compreendem como início de uma vida mais plena e feliz. Alguns poucos a consideram como uma possibilidade existencial. Quero, neste artigo, explicitar exatamente este último aspecto da morte, visto que é sob este viés que tenho refletido sobre esta realidade.
Segundo o filósofo alemão Martin Heidegger (1989-1976), a morte não é algo que nos aguarda ou nos espera no final da vida, mas é uma realidade que nos acompanha cotidianamente e faz parte da nossa estrutura constitutiva. Somos seres para a morte e o que podemos fazer é aceitar esta realidade, percorrê-la previamente e tirar dela lições importantes para qualificar a nossa breve existência neste mundo. Somos seres mortais e tomar consciência disso é de fundamental importância para programarmos a nossa vida e o nosso modo de viver.
A sociedade atual, mergulhada no “presentismo” sem memória e sem projetos, sufocada pelo mito da eterna juventude, focada na busca do prazer momentâneo e na valorização da capacidade produtiva, não reserva espaço para a morte e, quando esta acontece, tenta mascará-la ou maquiá-la com artifícios autoenganadores. Vive-se como se não fosse morrer e, infelizmente, esta postura rouba toda a beleza e as possibilidades humanas que a vida pode oferecer. Encarar a morte de frente pode nos trazer lições importantes.
A primeira lição é: devemos ser mais humildes. Diante do fenômeno da morte, deveríamos vencer certas tendências e sentimentos que existem dentro de nós e que não nos fazem mais felizes e nem qualificam a nossa relação interpessoal: vaidade exagerada, arrogância, prepotência, orgulho, sentimento de superioridade e onipotência. Às vezes nos esquecemos de que somos “pó e ao pó voltaremos” e que nem tudo está sob o nosso controle.
Não podemos controlar a morte. No dia em que ela bater à nossa porta, ainda que possamos retardá-la (dependendo dos recursos financeiros que dispusermos), não podemos anulá-la. Mais cedo ou mais tarde, iremos morrer. Por isso, devemos viver com mais humildade, tomando consciência de que somos mais iguais do que podemos imaginar. Os fatores que nos distinguem como raça, gênero, cor, religião, posição social, comportamento moral, são muito pequenos diante daquilo que nos iguala e que é constitutivo da nossa existência: a morte. Na minha terra natal, no pórtico do cemitério Municipal está escrita a frase: “Aqui somos todos iguais!”. Ali, antes de entregar à terra o corpo dos nossos entes queridos, somos interpelados sobre o sentido que estamos dando à vida e ao nosso viver.
A segunda lição é: devemos simplificar a vida. Tenho percebido que nós, seres humanos, complicamos demais a vida. Ela é mais simples do que imaginamos. Se tivéssemos consciência da nossa finitude, de que cada minuto é um minuto a menos e que cada instante é uma oportunidade nova e única, viveríamos a vida de modo diferente. Conscientes da nossa mortalidade, talvez não brigaríamos por qualquer coisa, não nos apegaríamos a coisas pequenas e passageiras, reservaríamos mais tempo para estar com quem amamos, dedicaríamos mais energia para atividades lúdicas e recreativas, nos preocuparíamos menos com as tarefas e mais com as pessoas. Talvez, daríamos mais tempo para nós mesmos, seríamos menos robotizados e faríamos mais o que nos agrada e nos realiza humanamente.
A terceira lição é: devemos priorizar o essencial.
É interessante como passamos boa parte da nossa vida priorizando realidades que não são fontes de verdadeira humanização e nem trazem sentido para a vida. A propósito disso: uma enfermeira australiana chamada Bronnie Ware, que cuidava de doentes em fase terminal, descreve os cinco maiores arrependimentos dos seus pacientes em final de vida. Segundo ela, “as pessoas crescem muito quando são confrontadas com a sua própria mortalidade”.
Cito aqui as cinco frases que revelam os arrependimentos dos pacientes:
1. “Queria ter aproveitado a vida do meu jeito e não da forma que os outros queriam”: o foco do arrependimento não é tanto pelo que fez, mas pelo que deixou de fazer porque priorizou agradar mais aos outros do que a si mesma;
2. “Queria não ter trabalhado tanto”: foi o pesar mais comum entre os pacientes do sexo masculino. Ao final da vida, os homens sentiam que reservaram pouco tempo para as pessoas e se privaram de momentos importantes na vida por causa do trabalho. Priorizaram o labor ao amor;
3. “Queria ter falado mais sobre os meus sentimentos”: havia arrependimento por não ter dito o quanto ama e gosta das pessoas, mas também por não ter dito a verdade na hora certa;
4. “Queria ter mantido mais contato com meus amigos”: havia profundo arrependimento por amizades que foram se perdendo ao longo da existência e que mereceriam mais tempo e esforço para serem cultivadas;
5. “Queria ter me permitido ser feliz”: este é um pesar muito comum. As pessoas sentiam que elas mesmas não contribuíram para a busca e a conquista da própria felicidade.
Mesmo tendo fé na ressurreição e na vida eterna, confesso que termino este artigo com um sentimento de angústia. Ainda bem que a angústia, segundo o pensador Heidegger, é fundamental para que a morte se torne uma possibilidade existencial. Creio que me identifiquei com os doentes terminais acompanhados pela enfermeira. Tomara que dê tempo para eu dar um novo rumo para a minha existência a partir das lições causadas pela morte. E você? Em qual “lugar” existencial se encontra diante destas reflexões?
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