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“Projetar a vida em um ano que se inicia”, pelo historiador Carlos Versiani

"O que esperar e como fazer planos para um ano novo? Ou ainda, na comemoração da passagem para um ano que se inicia importa mais a celebração coletiva ou os planos individuais de uma nova vida?", indaga Versiani.

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Por Carlos Versiani Publicado em 02/01/2025, 12:54 - Atualizado em 02/01/2025, 12:54
O carregador do tempo – Calendário Maia. Crédito – Reprodução. Siga no Google News

O que esperar e como fazer planos para um ano novo? Ou ainda, na comemoração da passagem para um ano que se inicia importa mais a celebração coletiva ou os planos individuais de uma nova vida? Para pensarmos essas questões, é preciso antes indagar sobre de que tratam, histórica e culturalmente, os hábitos e manifestações relacionadas à recepção de um novo ano. E aí, esbarramos, dada a diversidade de povos, línguas, saberes e crenças existentes no mundo, em centenas de manifestações e entendimentos diferentes; que implicam desde a diferença entre as datas em que diversos povos celebram essa passagem, até a diversidade dos próprios eventos comemorativos e seus significados.

O calendário da civilização Maia, por exemplo, é um complexo sistema de diferentes ciclos, baseados no movimento do sol, da lua, do planeta vênus, ligados ao sagrado e à observação de fenômenos naturais, em que não se comemora necessariamente a passagem de um ano solar, mas realizam-se rituais para trazer os bons e evitar os maus presságios na transição dos ciclos. À semelhança dos Astecas, que ao se encerrar um ciclo de 52 anos, consultavam os oráculos e sacerdotes, para saber como soprariam os ventos. E foi na passagem de um desses ciclos, em 1519, que veio a notícia da chegada de Cortez. Foi então que sacerdotes, animados por uma antiga predição, disseram tratar-se do Deus Quetzalcoalt, que um dia reapareceria nas águas do leste. Mas os maus presságios venceram essa predição, e o que se inaugurou, com a chegada de Cortez, foi o genocídio indígena nas Américas. 

Poderíamos também citar a China, onde o ano novo acontece em data variável, segundo o calendário lunissolar. Cada ano é governado por um dos doze animais que Buda transformara em signos da astrologia, por terem sido os únicos a atenderem a um pedido seu. Em 2025 será o ano da Serpente, em sua dimensão Yin. E os planos e expectativas dos chineses quanto ao que virá, levarão em consideração aquilo que milenarmente é atribuído a este signo, no caso, a introspecção, a sabedoria, a estratégia e a intuição da celebrada serpente asiática.  

Ou lembrar dos judeus, para quem, segundo uma interpretação ortodoxa dos antigos textos bíblicos, estaríamos no ano 5785 da criação do mundo. O ano novo judaico, que celebra esta criação, acontece com o aparecimento da lua nova, entre setembro ou outubro. E mais do que festa, é um tempo de reflexão e meditação. Do mesmo modo no islamismo, cujo calendário remete, ritualmente, à vida de Maomé, à sua cabalística fuga de Meca para Medina, e o ano novo é tempo de jejum, oração, meditação. Entre os cristãos, a celebração do ano novo primordialmente também tinha relação com o sagrado, comemorado no dia 25 de março, dia presumido da aparição do Anjo Gabriel à Maria, anunciando a ela a maternidade de Jesus.

O astrônomo Sosígenes de Alexandria foi o mentor do calendário Juliano, utilizado a partir de 45 A.C., em homenagem a Júlio César, então imperador romano.  Mas este calendário foi corrigido e modificado a partir do século XVI por intervenção do Papa Gregório XIII, e o calendário gregoriano passou a ser adotado por todas as nações cristãs. Hoje a maior parte do mundo adota este calendário, que tem o 1º de janeiro como o primeiro dia do ano, momento comemorado como passagem para um novo ciclo da vida, com muitos fogos, muita champagne, muitas simpatias e muita confraternização.  Uma celebração coletiva, mas envolta numa constelação de pedidos e orações quase sempre individuais; desde coisas pontuais, como arrumar um emprego ou passar no vestibular, até mudanças radicais no modo de viver e de conceber a própria existência.  

Feita essa digressão, voltemos às interrogações: o que há de comum entre as diversas manifestações relacionadas a um ano que se inicia, nas várias culturas e civilizações? Em comum, com certeza, é a perspectiva cíclica, que ainda alimenta o pensamento e a alma do ser humano, apesar de toda a linearidade da linha evolucionista pós-moderna, calcada na ideia de que a humanidade deve inexoravelmente caminhar sob as diretrizes desse estupendo avançar tecnológico. E quando falamos em perspectiva cíclica, pensamos em perspectiva ritual: aquela celebração coletiva, em que os elementos icônicos das vestes, da música, dos gestos, das vozes, fazem ascender à felicidade de um tempo primordial, que retorna à mente, ao corpo e ao espírito, independente do que realmente virá.

E o que difere realmente, em termos absolutos, para a existência do ser humano, a passagem de um dia ou de outro? Nada. O sol e a lua passarão da mesma forma sobre o céu da terra, cumprindo a mesma revolução de 24 horas. Durante esse período, as flores se abrirão e se fecharão, o vento soprará as nuvens, e muitas, em muitos lugares do planeta, irrigarão o solo com as gotas da chuva. Fará frio e fará calor, as pessoas terão sono e energia para despertar, ficarão sedentos e famintos, muitos nascerão e muitos morrerão, e um imenso borbulhar de passos, vozes, gestos e imagens atravessará todos os quadrantes da terra. Mas essa passagem também difere em cada lugar e cada ser humano, pois a forma e o conteúdo da ínfima parte desse infinito borbulhar nunca será igual para todos os seres e provocará, de forma diversa, a travessia dos dias.

E se não serão iguais, é possível pensar, e sonhar, que no dia em que a terra retorna à mesma posição em que se encontrava no momento do nascimento de uma pessoa, ou do início de um novo ano, completando o período de uma translação em torno do sol, as coisas poderão ter maior chance de se ajustar a um novo eixo, nessa engrenagem holística em que se insere desde sempre a vida humana. E daí a celebração ritual, repleta de abraços, presentes, votos de saúde, felicidade, prosperidade... E daí a sensação de que um ano novo sepultará para sempre todo o sofrimento e dor do ano que ficou para trás. E que mil portas enfim se abrirão para o futuro. Sensação que ignora o fato de que nada morre, de que tudo é acúmulo, e de que o novo, absolutamente novo, existe apenas na imaginação.

Mas o novo, é claro, existe na perspectiva relativa, da transformação de uma realidade individual e coletiva. Por isso é hora de as pessoas jogarem fora, ou depositarem num arquivo morto a agenda do ano que passou. E serem presenteadas com uma agenda novinha em folha, com todas as páginas em branco, em que irão reescrever, a cada dia, as linhas da sua história. Mas essa história, que você também escreverá, é só sua, ou é também a história do mundo? E aqui voltamos, como num ciclo, a outra indagação inicial: se a celebração da passagem de um ano é um ritual coletivo, porque o que se vê, genericamente, nas preces e votos, é a busca da realização de um sonho ou projeto particular?

A resposta, parece também claro, está no individualismo e consumismo que predominam na sociedade contemporânea, mas não só, essa realidade constitui um paradoxo. Posto que aí não se trata da comemoração do aniversário de uma existência pessoal, a volta do astro rei à mesma posição em que se encontrava quando do nascimento de um indivíduo. Mas do cumprimento e passagem de um ciclo que diz respeito a toda humanidade, ao planeta, ou ao contexto espaço-temporal coletivo a que esse indivíduo pertence.  E se os sinos e fogos soam uníssonos nos cinco continentes, é porque a terra estaria a se renovar igualmente para todos os que nela habitam.

Assim, as preces e votos também deveriam se voltar para os vários povos e quadrantes do planeta, que diariamente, em toda a sua extensão, recebe o impacto criativo ou destrutivo de nossas ações. Para isso, é necessário o esforço de nos compreendermos parte de um todo holístico, cuja reprodução ou fragmentação ao mesmo tempo reflete e condiciona a nossa capacidade criativa ou destrutiva. É necessário que os nossos desejos, planos e projetos individuais de vida, em um ano que se inicia, busquem se integrar à luta comum pelo bem de todos. Sabendo que o nosso mundo só será melhor, se for melhor para todo o mundo.

Sobre o autor

Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro. 

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