Devassas em uma Narração: Revisitando os Autos da “Inconfidência Mineira”

Leia a parte 1 do artigo do historiador Carlos Versiani: “Pensamentos, Palavras, Atos E Omissões”.

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Por Carlos Versiani Publicado em 04/04/2024, 14:38 - Atualizado em 04/04/2024, 14:38
Pintura de Pedro Américo, 1893. Crédito – Reprodução. Siga no Google News

O Visconde de Barbacena tomou posse como Governador da Capitania de Minas Gerais em 11 de julho de 1788. Nas instruções régias que trazia em mãos estava a ordem para que logo que chegasse a Vila Rica mandasse convocar a Junta da Real Fazenda, informando aos seus membros sobre a intenção de proceder ao estabelecimento da derrama, a cobrança forçada de todos os impostos atrasados do quinto do ouro;1 ordem esta efetivamente cumprida pelo governador. Assim, ao mesmo tempo em que começaram a circular em Minas algumas obras proibidas trazidas na bagagem de cientistas mineiros que retornavam recém-formados da Europa, como o livro contendo as leis constitutivas das ex-colônias inglesas na América, 2 a capitania já ficava a par das intenções da Coroa Portuguesa de impor à população a temível derrama.

Os dois principais elos da corrente que levaria ao movimento de conjuração então se interligavam: a insatisfação dos povos com a progressiva decadência das Minas, a ser agravada com a imposição da derrama, e as ideias revolucionárias e emancipacionistas vindas da França e da América setentrional. A partir do segundo semestre de 1788, portanto, passariam a se efetivar, de forma mais sistemática, as conversações sobre um possível levante da Capitania, no movimento que ficaria oficialmente conhecido como “Inconfidência Mineira”.

A despeito do malogro final de tal movimento, os personagens e as prin­cipais idéias do plano conspiratório se conservaram até o presente através de uma preciosa fonte documental: os Autos de Devassa da Inconfidência Mineira. Toda a historiografia sobre o tema da Conjuração Mineira teve como base obrigatória de pesquisa os depoimentos dos “Autos”, incluindo os documentos anexados posteriormente em duas edições. Muitos foram os pesquisadores que desde o século XIX  se debruçaram sobre estas fontes para escrever sobre a História daquela Conjuração. Com base nos “Autos”, muitos motivos fo­ram aventados como principais propulsores do movimento; os passos “declarados” do plano de sedição  já foram agrupados sincrônica e diacronicamente; os depoimentos destrinchados em busca das “verdadeiras” idéias embutidas nas palavras dos depoentes. Mas, feliz­mente, eles permanecem como fonte inesgotável de pesquisa, não apenas do movimento pelo qual a devassa se instalou, mas também em relação ao cotidiano e às formas de pensamento vigentes no período.

Utilizando também dos Autos como base neste trabalho, queremos tecer algumas considerações metodológicas em relação a cuidados que devemos ter na pesquisa dos mesmos. Antes de tudo, é preciso termos em mente que se trata de um enquadramento oficial do movimento. E que as  várias inquiri­ções orbitavam ordenadamente em torno de um eixo central pré-determinado: o enredo traçado através das cartas-denúncias, formadoras do “Corpo de Delito”. Por mais que se multiplicasse, a cada depoimento, o número de implicados, e se alterasse a sequência dos fatos relatados, a lógica estabelecida pelo sistema inquisitorial não se modifica. Os depoimentos estavam hierarquizados numa escala de valores pré-estabe­lecida, às vezes até com divergências, pelos vários responsá­veis quanto ao andamento do processo. Tal procedimento não deve ser necessariamente seguido pelo historiador, para quem a importância histórica de uma declaração do “mulato” Cipriano é em essência a mesma de uma carta-denúncia de Joaquim Silvério dos Reis.

Houve, na verdade, duas devassas, uma aberta em Minas, outra no Rio de Janeiro. Mas o vice Rei Luiz de Vasconcellos, insatisfeito com a primazia de Minas nesse processo, logo mandou juízes para assumir a devassa em Minas Gerais, não sem resistências por parte do Visconde de Barbacena, seu sobrinho. O ouvidor enviado pelo vice-rei chegou a Minas alguns dias depois da morte de Cláudio, ocorrida em 4 de julho de 1789, na dependência da denominada Casa dos Contos. Eis o seu depoimento sobre o único interrogatório de Cláudio Manuel, a dois dias de sua morte, realizado por magistrados de Minas, lançando dúvidas sobre a legalidade daquela inquirição, e sobre a própria versão oficial de suicídio do poeta inconfidente:

Tendo sido principiado a ser perguntado pelo Ouvidor de Vila Rica ia declarando algumas cousas, dizendo que as conversações eram do que podia fazer-se e não deliberadas que se fizessem, e logo se enforcou a si mesmo na prisão, ficando as perguntas injurídicas por falta de assistência de tabelião, e sem juramento quanto a terceiro: quando cheguei a Minas já isto tinha sucedido, e fiz que se acautelasse a respeito dos mais, pondo as perguntas jurídicas e válidas. 3

Independente das críticas do ouvidor, temos que o austero mo­delo inquisitorial português, originário dos tribunais do “Santo Ofício” e apropriado depois pelas “Mesas Censórias Régias”, caracterizava-se por se mostrar impecável em perícia e habilidade investigativa. Na conjuração das Minas, o tribunal régio se revelaria outra vez eficaz, em suas de­terminações de “conhecer não somente os autores e cúmpli­ces de tão execranda maldade, mas todo o pernicioso sis­tema, e o progresso dela”4 . Já o Historiador  não estaria preocupado apenas no detalhamento do plano de sedição e no arrolamento dos principais implicados. Mas também na forma e no conteúdo implícito das narrações, o significado que as palavras (verdades ou mentiras) pode­riam ter para a reconstituição do imaginário e do coti­diano da época descrita. Seria nossa tarefa também  desfazer e refazer o novelo de linhas traçadas pela oficialidade  dos “Autos”, inclusive para compreender com maior clareza a versão oficial, colocando os ouvidores, ministros e governantes responsáveis como réus de uma outra  investigação.

Nesse sentido, é importante pensar no poder e no significado das palavras no cotidiano das Minas e em como estas mesmas palavras foram se modificando, adquirindo novos sentidos uma vez aprisionadas ao roteiro dos “Autos”, submetidas ao objetivo oficial de se retirar delas uma “Formação de Culpa”.  O mineiro, em geral, sabia muito bem como e quando se expressar, sabia fazer bons negócios com a palavra. Numa sociedade onde todos deviam a todos, a honra da palavra era, na verdade, o maior crédito que as pessoas possuíam. Não houve dúvida quando os participantes do movimento acertaram, nas reuniões sediciosas, por segurança, que nada seria escrito, pois a honra segurava o segredo da palavra falada. E como depôs no Rio de Janeiro o criado conversador “fulano Cordeiro”, zombando da denúncia de Silvério dos Reis: “o papel admitia tudo quanto se lhe quisesse escrever”5 .  

Por outro lado, a sociedade mineira vivia a todo o tempo, em relação às normas exógenas do sistema, um processo de dissimulação. Cabia às palavras também dissimular a verdade dos extravios e das práticas cotidianas ilegais. A sobriedade falsa das etiquetas, e das saudações laudatórias nas correspondências oficiais, propiciava um campo fértil para as ironias. Principalmente quando o assunto em pauta era amargo o bastante para justificar todo esse respeito. Temos um bom exemplo de ironia desta espécie na representação da Câmara de Vila Rica, de 1766. Os camaristas lembravam  sutilmente à Coroa  que o prazo para o vigor do terrível subsídio voluntário, imposto em 1756 com duração inicial de 10 anos, havia terminado, mas que em outra ocasião que o Rei  “pedisse, ou mandasse (...) acharia sempre o seu real preceito àqueles fieis, leais e obedientes vassalos, prontíssimos a sacrificar voluntariamente vidas e fazendas em aumento da Real Fazenda, e Coroa de Vossa Majestade”.6   

Ainda cabe dizer que nesse processo então vigente, de grandes transformações mentais, muitos conceitos estariam sendo incorporados à linguagem cotidiana sem estarem já “saturados historica­mente, isto é, claramente elaborados e explícitos”7 , o que tornou necessária uma reinvenção das palavras, emprestando às novas ideias todo um sotaque regional. A  entronização dos modernos conceitos de “República”, “Liberdade”, “Nação”, “Independência”,   pressupunha uma criação coletiva, pela ação das palavras,  de uma nova  identidade. Mas uma vez aprisionadas e acorrentadas ao roteiro traçado pelos inquisidores, as palavras perderiam muito do seu poder de representação, a sua força transformadora, já que impedidas de transfor­mar. Com raras exceções, não seriam assumidas com o mesmo ímpeto com que foram formuladas, pelo medo da culpa. Ou então seriam revestidas de um discurso moral provavelmente inexistente, quando proferidas no calor dos acontecimentos que resultaram na devassa. 

Neste sentido, a “devassa” também signi­ficou a cassação dos novos sentidos adqui­ridos pelas palavras, e a cassação da própria honra das palavras, num processo em que “para estar preso basta o ter sido denunciado”8  Mas não se poderia cassar “o ânimo com que se proferem as palavras”, e que segundo Gonzaga seria “oculto aos homens”9 . Em alguns momentos percebemos nas palavras devassadas a resistência da sua essência significante. Como nesta passagem do velho Abreu Vieira, ao rejeitar as insinuações dos inquiridores sobre o teor de algumas cartas  endereçadas a ele pelo Padre Rolim. Diz ignorar “totalmente que as referidas palavras tinham algum sen­tido diverso do que elas mesmas significam “10

Os “Autos” constituem um imenso acervo histórico e filológico, e ao manipulá-lo, o historiador deve colocar de antemão os objetivos e hipóteses que fundam esta manipulação. Isto para não correr o risco de, no frenesi de apreender o todo, esquecer da complexidade das partes que o constituem. O nosso interesse específico, nesta leitura que ora fazemos, não é discutirmos o grau de participação e envolvimento dos diversos acusados na chamada “Inconfidência”; nem tampouco re­constituir os passos daquela conjuração, tecer detalhada­mente o “pernicioso projeto”, as leis e etapas dos planos de construção de uma nação. Mas tão somente tentar reti­rar dos “Autos” palavras que venham de encontro a algumas hipóteses. Resumidamente, reforçar o que pensamos sobre o enraizamento social e a carga ideológica das propostas emancipacionistas, colocando-as como absolutamente próprias ao verificado processo de autonomia  econômica, política e cultural da sociedade mineira ao longo de todo o século XVIII. E reafirmar que o projeto emancipacionista estava totalmente em consonância com as ondas revolucionárias correntes por toda Europa; também identificado ideológica e politi­camente com a revolução americana, enquanto parte do mesmo universo atlântico colonizado.

Mas esse é um assunto para a segunda parte do artigo, que continua na próxima postagem...


1 AUTOS DE DEVASSA DA INCONFIDÊNCIA MINEIRA (ADIM). Belo Horizonte, ALMG/Imprensa oficial, 1978, vol. VIII,  p. 41-105 -  “Instrução para o Visconde de Barbacena”, datada de 29/1/1788.

2 No mês de agosto de 1788, Tiradentes recebera no Rio de Janeiro, das mãos do filósofo e químico José Álvares Maciel, a obra Recueil des Loyx constitutives des Colonies Angloises confédérées sous la dénomination d'États-Unis de l'Amérique Septentrionale.

3 ADIM, vol. 7.

4 ADIM, vol.I, p. 91. Fragmento de portaria baixada pelo Visconde de Barbacena.

5 ADIM, vol. I, p. 324. Testemunho do Furriel Manoel José Dias. É uma versão original do ditado contemporâneo: “o papel aceita tudo”.

6  Revista do Arquivo Público Mineiro,  vol. XVI, 1911, p. 243. O imposto acabaria sendo prolongado por mais dez anosvinte anos depois do terremoto que o originou.

7  MOTA, Carlos G. A ideia de Revolução no Brasil e outras ideias. São Paulo: Martins Fontes,1982, p. 39.

8 ADIM, vol. VI, p. 249. Depoimento de Gonzaga.

9 ADIM, vol. IV, p. 282.

10ADIM, vol. II, p. 24.

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