Antonio Marcelo Jackson* Em meados da década de 1930 veio à baila o livro de Sérgio Buarque de Holanda intitulado “Raízes do Brasil”. Em que pese o ineditismo na utilização de conceitos sociológicos em quase nada citados no Brasil de até então para a explicação do comportamento de nossa sociedade ao longo de sua história, sempre ficou a marca de um dos capítulos do livro e que inúmeras vezes foi muito mal compreendido, a saber, o “O Homem Cordial”. Nesse momento do texto, o autor transforma a palavra em um conceito e o aplica ao meio social brasileiro: os indivíduos em nosso país são antes e acima de tudo cordiais! Porém, e é aqui que a maior parte dos erros surge, essa “cordialidade” deve ser entendida não pelo senso comum, ou seja, como um sinônimo de cortesia, gentileza, entre tantas outras coisas, mas sim, um “cordial” que se prende às mazelas do coração e dos sentimentos. De acordo com Sérgio Buarque, a visão de mundo do brasileiro parte inquestionavelmente de seus sentimentos; parte de como as coisas que vê e vive podem ser incorporadas a seu afeto, a seu círculo de “amores”. Com isso, o primeiro passo que qualquer indivíduo em nosso país dá – com as exceções de sempre – é no sentido de transformar todas as coisas em coisas íntimas, em objetos ou seres que de algum modo façam parte de seu foro mais particular e que, portanto, possam ser protegidos e possam dar proteção. Um dos melhores exemplos apresentados pelo autor é o hábito brasileiro do diminutivo (“Serginho”, “Pedrinho”, “Mariazinha”) como forma de se criar pelos nomes uma proximidade entre os interlocutores. Tal comportamento gera como consequência uma incapacidade desse mesmo indivíduo em perceber a distinção obrigatória de que existe um “universo” que é privado, particular, e um outro que não nos pertence, que é publico e que, sendo de todos, não é propriedade de ninguém. Nessa “lógica brasileira” apresentada pelo autor de “Raízes do Brasil”, as pessoas então produzem outra e estranha dicotomia que não se prende à relação público/privado que ocorre em boa parte do Mundo Ocidental, mas sim a aquilo que é de foro íntimo e aquilo que não é; ou, em outras palavras, a dicotomia brasileira passa a ser amigo/inimigo: se você é parte de meu “círculo” então é meu amigo; se não faz parte, então é meu inimigo. Talvez essa consequência possa ser algo bem simples para um leitor desavisado, afinal qual o problema de ter mais simpatia por alguém ou alguma coisa e nenhuma simpatia por outras coisas e pessoas? Que mal há em não desejar a proximidade de um conjunto de situações e dos indivíduos envolvidos em algo e ansiar pela presença de outros? Em princípio a resposta é não, não há de fato problema algum nisso. Entretanto, quando transportamos para o mundo esses conceitos e práticas e lembramos que na maior parte das situações em que nos encontraremos será de um conjunto de espaços públicos sem-fim, essa “dicotomia brasileira” passa a apresentar problemas. O primeiro deles reside numa deturpação da coisa pública: se eu sou brasileiro e se tenho como característica principal em meu comportamento entender que tudo deve fazer parte de meu foro íntimo, então qualquer coisa que vejo e que tenho interesse transformarei em “coisas minhas”, em “meu patrimônio”, afinal, aquilo que não é meu é de meu inimigo e como então conseguiria andar pelas ruas em espaços tão hostis a mim, conforme meu entendimento sobre o mundo? Para esse caso os exemplos são incontáveis: se realizo uma festa em minha casa coloco o som na altura que desejar; se quero que essa festa se expanda, fecho a rua, afinal a “rua é minha!”; se exerço algum cargo público (um político, quem sabe?) tomo medidas que apenas me beneficiam. Da mesma forma não tenho preocupação alguma com tudo aquilo que é público, afinal pertence a meus inimigos! Um segundo problema que aparece diz respeito à posição que cada um ocupa na sociedade (seu status social) e a posição dos demais. Numa lógica de amigo/inimigo, dessa “cordialidade brasileira”, qualquer movimento social, qualquer mobilidade social, é vista como agressão; é o “inimigo que invade meu espaço e ameaça minha estabilidade”. Um lamentável exemplo nesse sentido pode ser visto no caso das duas professoras universitárias do departamento de Letras da PUC-Rio quando afirmaram via redes sociais que o Aeroporto Santos Dumont “se transformara numa Rodoviária Novo Rio” (aeroporto como vinculado à riqueza e rodoviária vinculada à pobreza) quando viram um rapaz de roupas mais simples no saguão, próximo a elas. Outro exemplo lamentável é a crítica ao Programa Bolsa Família e a omissão quanto ao pagamento de pensões às filhas de militares: entende-se que o dinheiro público possa ser utilizado para uma determinada classe social e deve ser proibido a uma outra. Apenas um detalhe: o Governo Federal gastou um pouco menos de 4 bilhões de reais com o Bolsa Família em 2014 (para aproximadamente 45 milhões de pessoas) e pouco mais de 5 bilhões de reais com as pensões de filhas de militares (aproximadamente 103 mil pessoas). Um terceiro e último problema para não me estender mais diz respeito ao comportamento cotidiano desse brasileiro em relação a todos os demais que por ventura não concordam com sua opinião. Numa “lógica amigo/inimigo” qualquer negativa ou posição contrária a uma afirmação a mesma será entendida como uma “declaração de guerra” ou algo parecido. Bastou, por exemplo, a utilização de uma conhecida frase da escritora e pensadora francesa Simone de Beauvoir (“não nascemos mulheres, nos tornamos mulheres”) no último ENEM para que a “cordialidade tupiniquim” somado ao machismo intolerante expusesse mais uma vez nas redes sociais e sem constrangimentos toda sua ira e sua ausência de tolerância. Com tudo isso pergunto onde nossa “cordialidade” nos levará? Claro que não me iludo acreditando que a mesma estava adormecida e apenas coisas boas vinham à tona; afinal, conforme disse sabiamente um prezado amigo e também professor universitário, André Conforte, “o Facebook não criou idiotas, apenas os expôs”. Mas, sempre fica a pergunta do porquê desse rodamoinho de injurias e ofensas que não cessam e que não são embargadas pela vergonha ou pelo simples entendimento de que tudo deve possuir limites. Por um lado, essa “cordialidade” brasileira explica o número de mortes no trânsito, o número de assassinatos por arma de fogo, a quantidade e a fertilidade de nossos absurdos. Mas, por outro, há também uma possível conclusão de que a sociedade brasileira faliu ou, numa paráfrase a Caetano Veloso, ela já se encontrava em ruína quando ainda estava em construção. Vá saber... *Doutor em Ciência Política. Professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
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