Leia “Desumanidade”, a nova crônica de Valdete Braga

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Por JornalVozAtiva.com Publicado em 23/03/2021, 10:43 - Atualizado em 23/03/2021, 10:43

Depois de exatos 46 dias ininterruptos em casa, trabalhando home office, precisei resolver algumas questões presencialmente. Aguardei a tarde de sábado, onde supostamente o movimento de pessoas seria menor no local, e, com os cuidados necessários, saí para resolver o que precisava.

Quando passávamos pela rodovia, percebemos movimentação da guarda municipal e seguimos adiante. De dentro do carro, ouvi uma gritaria, onde uma voz se sobressaía, visivelmente embriagada. A pessoa gritava impropérios sobre a guarda municipal e deu para ouvir nitidamente a frase “a gente não pode nem desestressar mais”. Não me preocupei em olhar quem gritava, e seguimos até onde eu precisava (eu pre-ci-sa-va) ir, resolvi o assunto e retornei para casa.

Cheguei, deixei o sapato na varanda, tirei a máscara, tomei um banho e vim para o computador. Enquanto escrevo, fico imaginando onde estará agora a pessoa que gritou, aquela pessoa que estava “se desestressando” no acostamento de uma rodovia pública, entre outros, com garrafas e copos nas mãos, isso tudo na fase mais grave de uma pandemia, com o município em meio à onda roxa. Dispersado pela guarda municipal, que impediu o seu “desestresse”, não duvido que já tenha voltado.

Estamos todos estressados e exaustos, a diferença entre uns e outros se chama humanidade. Se você ainda “não acredita”, quando atingimos mais de duas mil mortes por dia no país, quando nossa cidade contabiliza 60 óbitos, se você está esperando um parente seu partir para acreditar, entenda que o problema não é só seu, como insiste em gritar aos quatro ventos. Se a sua cerveja é tão vital para você, compre quinhentas caixas, encha a sua geladeira e se “desestresse” dentro de sua casa, sem colocar em risco a vida dos outros. Se o “seu” Deus é superior ao Deus dos outros, que “salva” você independente do que faça, e você é tão melhor do que o restante da humanidade, fique você com sua superioridade, sem colocar em risco nós outros, que somos apenas seres humanos normais.

Os trabalhadores da guarda municipal e da polícia civil também estão estressados e exaustos, e são obrigados a se colocarem em risco por gente como você, egoísta, irresponsável e desumana, que se aglomera em pandemia e só sabe “se desestressar” criminosamente, colocando sua cerveja acima da vida humana.

Criminosamente sim, porque se “para você não dá nada”, pode dar para mim, que apenas passava, por necessidade, onde você, contaminado e que por alguma razão que ninguém ainda conhece não desenvolveu a doença “se desestressava”. Pode dar para os seus pais ou os seus filhos quando você, contaminado e sem sentir nada chegar em casa, depois do seu “desestresse” e passar a morte para eles. Pode dar para os profissionais que você acusa aos gritos de impedir o seu lazer, e que na verdade nada mais estão fazendo do que tentarem salvar vidas.

Não consigo nem imaginar a dor que deve ser morrer sufocado, sem conseguir respirar, ou em um leito à espera de vagas na UTI. Ah, mas a sua cerveja é mais importante. Beber até cair em grupos no acostamento de uma rodovia pública vale muito mais para você do que a vida humana. Ah, meu caro, se o seu lazer é mais importante do que a sua vida, que pelo menos não seja do que da vida dos outros.

Beba, grite, valorize o que realmente importa para você, mas faça isso no seu espaço (você o tem, você não é um pobre dependente alcoólico que não tem onde morar, você o faz consciente e por provocação).

Gente assim não é gente. Não está ali por não ter opção, não bebe por dependência e precisa de tratamento, o que é outra história. Gente como esta pessoa que gritou faz por pura falta de humanidade, mesmo. É um ser tão pequeno, que precisa se afirmar desta forma, tentando “crescer” em cima de profissionais que cumprem sua obrigação, uma obrigação árdua, diante de tanta ignorância.

É difícil sentir até piedade de gente assim. Enquanto trabalho, agradecida por poder fazê-lo, quando tantos não podem mais (como um colega que partiu esta semana) penso se não será por causa de gente assim que nosso planeta passa por este momento.

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