‘Uma criptomoeda pode salvar uma economia em crise?’, por Emilio Moreno Plascencia

“Finanças para todos”: Leia o novo artigo do colunista mexicano Emilio Plascencia.

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Por Emilio Moreno Plascencia Publicado em 05/06/2025, 08:36 - Atualizado em 05/06/2025, 08:36
Foto — Emilio Moreno Plascencia. Crédito — Reprodução. Siga no Google News
Foto - Reprodução/Divulgação

Na Argentina, a inflação deixou de ser um conceito técnico para se tornar um inimigo cotidiano. Comprar arroz na segunda-feira e encontrá-lo 20% mais caro na sexta já não é uma anomalia. Nesse cenário, a confiança no peso argentino se deteriorou a tal ponto que milhões de cidadãos deixaram de usar sua moeda nacional e passaram a recorrer a um substituto que não é respaldado por nenhum banco central, nem possui reservas soberanas: o USDT, ou Tether.

O Tether é uma stablecoin, uma criptomoeda teoricamente atrelada ao valor do dólar norte-americano. Diferente do Bitcoin, seu preço não oscila de forma drástica: um USDT vale sempre (ou quase sempre) um dólar. Essa característica simples transformou o Tether no novo colchão de poupança de grande parte do Cone Sul. A economia argentina tem uma longa relação de amor e ódio com o dólar. Desde os anos 1990, o “dólar blue”, o “contado com liqui” e outras versões do câmbio paralelo se tornaram válvulas de escape para uma população que aprendeu, a duras penas, que economizar em pesos é o mesmo que não economizar. A novidade, agora, está no meio: o dólar digital.

Hoje basta baixar um aplicativo — Binance, Lemon, Ripio — e, em menos de três minutos, qualquer pessoa pode trocar pesos por USDT, muitas vezes sem sequer passar por um banco. O Tether não exige esconder maços de dinheiro no fundo falso de uma gaveta nem cruzar para o Uruguai com uma mochila cheia de cédulas: é, literalmente, um salva-vidas que cabe no bolso de um adolescente. O mais revelador é que esse fenômeno não é exclusivo da Argentina. Na Venezuela, as remessas chegam cada vez mais por meio de criptoativos; na Nigéria, jovens empreendedores vendem serviços online e recebem em USDT para se protegerem da volatilidade do naira; e até na Ucrânia, em meio ao conflito, as stablecoins têm sido utilizadas como meio de pagamento quando a infraestrutura bancária entra em colapso.

Esse deslocamento monetário levanta uma pergunta incômoda: se cidadãos de países em crise estão abandonando as moedas nacionais para usar criptomoedas estáveis, isso não configura um voto de desconfiança no sistema monetário tradicional? Em certo sentido, sim. Mas trata-se de um voto silencioso, discreto, ao qual as instituições reagem com cautela, quando não com negação. Nem o FMI, nem os bancos centrais estão dispostos a reconhecer que sua hegemonia está sendo minada pelas margens. E, no entanto, os dados confirmam. O índice global de adoção de criptoativos da Chainalysis mostra que seis dos dez países com maior uso proporcional dessas moedas estão na África ou na América Latina.

Paradoxalmente, essa transformação que ocorre de baixo para cima também expõe novos riscos. Muitos cidadãos acessam esses ativos por meio de plataformas não reguladas, sem qualquer garantia jurídica ou mecanismos de proteção contra fraudes. Além disso, o respaldo da própria Tether já foi questionado diversas vezes por sua opacidade e pela ausência de auditorias independentes. Em outras palavras, o que hoje parece ser uma tábua de salvação pode, no médio prazo, transformar-se em uma fissura ainda mais perigosa caso essa confiança digital venha a ruir.

A pergunta inicial persiste. Uma criptomoeda pode salvar uma economia? Não. Economias não se salvam com ativos digitais, mas com políticas públicas coerentes, instituições sólidas e ambientes que estimulem o crescimento produtivo. Mas o que uma criptomoeda pode, sim, é salvar uma família. Um aposentado que não quer ver sua pensão se dissolver mês após mês. Uma mãe solteira que precisa enviar dinheiro aos filhos sem perder 20% em comissões. Um jovem que recebe em dólares por seus serviços digitais e prefere não confiar em um banco que limita seu acesso ao próprio dinheiro.

A popularização das stablecoins não é apenas uma moda tecnológica. É um sintoma. É o equivalente econômico de uma febre: o corpo está sinalizando que algo não vai bem. Desprezar essa febre como “pirataria financeira” ou “excesso especulativo” seria um erro de diagnóstico. O que está em jogo não é apenas a moeda, mas a confiança. E na economia, confiança é um ativo tão valioso quanto volátil. Uma vez perdida, não há algoritmo que a recupere.

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