Nascido há 47 anos em Braga, no Norte de Portugal, Pedro Rodrigues é filho de terras galegas, região de lendas, contos e tradições orais milenares. Anos depois, trocou Braga pela cidade invicta do Porto, pela qual se sentiu acolhido e adotado.
Licenciado em Comunicação Social, foi produtor e apresentador de TV de programas culturais. Hoje é tradutor de profissão e poeta de horas vagas. São essas as suas duas paixões, que ele crê que se complementam e entreajudam na eterna busca de descrever o real através da palavra.
É difícil um português não desenvolver uma relação de afeto com o Brasil desde tenra idade. A "colonização" cultural de Portugal por parte do Brasil é algo sempre presente no nosso cotidiano e bem-haja por isso, porque não é uma invasão forçada, não é uma imposição, antes uma afinidade espontânea, fruto talvez do que partilhamos como povos e que nos aproxima nas artes e nos afetos. Ela é, regra geral, bem aceite pela maioria dos portugueses.
Do Sítio do Picapau Amarelo às novelas das 8, de Ariano Suassuna a Clarice Lispector, do violão caipira ao Samba, Pagode e MPB, da coxinha e do pastel ao feijão tropeiro, não há um recanto em Portugal onde não chegue um cheirinho, um sabor, uma melodia de Brasil.
Por isso, talvez o choque cultural não tenha a bilateralidade que se esperava. Creio que, por força da influência da cultura brasileira na cultura lusitana, o português chega ao Brasil já com uma panóplia de referências culturais que facilitam a adaptação, algo mais difícil no caso inverso.
Ainda assim – e sendo que essa familiaridade é obviamente consequência do legado português e dos costumes que deixámos aqui – as diferenças culturais, sociais e políticas são acentuadas pela riqueza da mescla de culturas que tão bem define o Brasil.
Cidade reconhecida como património da Humanidade em 2019, Paraty é um festim de cores, aromas e sons. E é sobretudo, um lugar onde a História está viva e de boa saúde.
Mas um turista português não é um turista qualquer. Ele carrega, na memória coletiva de que faz parte, o fardo de uma história muitas vezes inglória e se tiver em si um rasgo de consciência social e histórica, a sua visita ao Brasil não será só um mar de selfies. Será sobretudo, um exercício de reflexão.
Paraty, pelo seu teor histórico, é um desses casos.
Paraty é uma cidade com uma marca portuguesa indelével e basta entrar no centro histórico para perceber o porquê. O primeiro impacto de familiaridade é a arquitetura, obviamente. Qualquer português identifica duas coisas: as telhas e as casas pintadas de branco. Em Portugal, no sul, as casas são pintadas de branco para refletir o calor. E sendo uma região onde chove pouco, essas casas têm telhado raso, usado também para secar e salgar alimentos. Já no norte, onde chove muito e faz frio, as casas não são brancas, mas sim de pedra, geralmente granito ou xisto.
Mas os telhados, esses sim, são de telha, com as típicas beiras para deixar escorrer a chuva longe das paredes da casa. Paraty, sendo uma cidade de muito calor e muita chuva, é o exemplo vivo da combinação de dois traços arquitetónicos portugueses – as paredes brancas do sul e os telhados de telha do norte - que se uniram deste lado do Atlântico, criando uma novidade estranhamente familiar. Mais curioso ainda é que essas casas brancas do sul, esse pedaço de Portugal virado para Marrocos, são exatamente uma influência magrebina, um legado da Península Ibérica mourisca de outrora.
As grandes diferenças culturais e sociais que se destacam têm obviamente a ver com a diversidade de culturas que habitam o Brasil e fazem da sua cultura o que ela é hoje. Infelizmente, o peso atribuído a cada uma dessas culturas não é bem distribuído. Mas elas estão presentes, quer alguns queiram, quer não. E isso está bem patente em Paraty. É uma cidade que tem simultaneamente a leveza de uma cidade turística – por vezes até um pouco “gourmetizada” demais – e o peso de uma História de exploração de recursos e povos. É uma fusão que pode passar despercebida ao português mais incauto, mas não àquele que conhece e reconhece a sua História, por mais que doa.
Pela sua importância na rota do ouro, a baía de Paraty tornou-se o lar de portugueses e negros escravos, trazidos para o transporte do ouro da perigosa e difícil Serra da Cunha até Paraty, onde seguia para o Rio e daí, para Lisboa. Ainda hoje se pode andar pela rua que fazia parte da Rota do Ouro e que termina no cais ao lado da Igreja de Santa Rita de Cássia. E é impossível não sentir o pathos das histórias de outrora, quando pisamos as pedras das ruas desta cidade.
Para além dos escravos africanos, as comunidades nativas daquela região tentaram, ao longo dos séculos, sobreviver aos sucessivos invasores, primeiro portugueses e depois, os próprios brasileiros. Ainda hoje se podem encontrar algumas comunidades indígenas no litoral carioca. Mas estão confinadas a pequenas reservas, passando o dia na cidade de Paraty entretendo o turista de fim-de-semana que quer tirar uma selfie com um cocar na cabeça ou levar um colar de pedras para casa e dizer aos amigos que teve uma experiência espiritual com “o índio”.
De certa forma, a discriminação contra os povos originários é a última fronteira do racismo no Brasil. Claro que ainda existe racismo em relação aos negros e outras minorias étnicas, mas já é socialmente condenável e até crime. E ainda bem, que já se fazia tarde. Mas por vezes, parece que esqueceram de incluir os povos originários nesse novo paradigma humanista de inclusão.
Quanto a África, como mãe que é, ela está presente em tudo o que é brasileiro. E Paraty não é exceção. Um exemplo disso são as associações e grupos dedicados à promoção da herança africana na cultura brasileira, da comida à música, da literatura ao cinema, passando pela religião e outras formas de interação e coesão social. Não é difícil, para quem passar mais de dois ou três dias em Paraty, ouvir os tambores de Maracatú na beira do cais, assistir a um samba de rua no centro da cidade, passar por um trio de forró na esquina da Igreja de S. Benedito.
E se forem visitar as cachoeiras que rodeiam Paraty, não será improvável encontrarem oferendas para Ogum, Oxum ou Yemanjá. África está presente nos menores detalhes e nas maiores obras. Todas as pedras das calçadas, todas as paredes das casas, todas as igrejas erigidas tiveram a mão dos povos africanos e a eles devemos uma riqueza extra na arquitetura paratiense e na verdade, na arquitetura e nas artes de todo esse imenso Brasil.
No entanto, não posso deixar de salientar que, com a devida atenção, podemos notar alguns resquícios dos tempos segregacionistas de outrora. É algo ainda presente e exemplo disso é a discriminação das religiões de matriz africana e dos seus tambores. Numa tarde solarenga, passeando pelo centro, deparo-me com uma loja de artesanato caiçara, com um par de congas à porta. O dono gentilmente me acolheu e mostrou os vários instrumentos que tinha. Começámos a tocar e descemos para a rua. A nós juntou-se um amigo do dono da loja, atraído pelo som dos tambores.
Os turistas passavam e sorriam, admirando o som ao vivo, que combinava tão bem com aquela rua cheia de gente e de cor. Eis que surge alguém dizendo que não podemos tocar tambores na rua. Éramos dois brancos e um negro tocando, mas o som era claramente afro-brasileiro e remetia às tradições africanas e não europeias. No momento em que esse senhor nos diz para parar de tocar, do outro lado da rua, sentado num banquinho em frente ao restaurante onde ele próprio tocava, estava um jovem moreno e alto, que se percebia ter ao mesmo tempo antepassados europeus e africanos. Mas naquele momento – e com toda a pertinência – a herança de África falou mais alto. Então, ele diz: “Continuam querendo calar nossos tambores”.
Até hoje e para sempre, essa frase ficou marcada na minha mente e no meu coração. Numa frase tão pequena, estavam contidos séculos de História, sofrimento e luta. Nesse momento, não foram só os tambores que se calaram. Também se calaram as pessoas, sob o peso simbólico daquela frase.
Todo este episódio, na minha opinião, representa bem a diversidade cultural do brasil, as suas idiossincrasias, as suas contradições, a sua beleza, o seu constante ajuste entre os vários povos dentro de um povo.
Porque não há um só Brasil. Este país é um continente, com países como estados. É, pelo menos, essa a impressão de um europeu, acostumado com países de tamanho consideravelmente menor.
Depois de Paraty, a viagem seguiu para Ouro Preto. Visitar o Brasil sem ir a Minas Gerais seria, como se diz na minha terra, igual a “visitar Roma e não ver o Papa”.
Para quem vem do verdejante e montanhoso norte de Portugal, é impossível não se deslumbrar com as semelhanças entre Ouro Preto e cidades portuguesas como Porto, Braga e tantas outras vilas dessa região.
Aliás, a frase “Nossa, parece Ouro Preto” é a primeira a ser proferida quando um brasileiro visita Braga ou Porto.
Cidade construída a partir da sua fonte de riqueza, o rio Douro, o Porto foi subindo as colinas e ladeiras dos montes circundantes, tornando-se uma teia de ruas estreitas e telhados de telha de barro, com lindas fachadas oitocentistas, floreada aqui e ali com azulejos, cornijas, varandas, beiras e tribeiras. De fato, não é exagero da parte do emigrante brasileiro, que podia talvez querer forçar semelhanças, na ansiedade de encontrar algo que mate a sua saudade. Da mesma forma, chegando a Ouro Preto, a familiaridade da paisagem (natural e urbana) atinge qualquer português de forma intensa e imediata, sobretudo para quem é do Norte do país.
Para quem vem de qualquer outra parte do Brasil para Minas Gerais, algumas diferenças são palpáveis. Talvez seja esse misto de isolamento geográfico, o clima agreste e o legado de luta e sentido de comunidade que confere ao povo Mineiro aquela típica hospitalidade, conhecida até em terras lusitanas. Mas devo dizer que o estereótipo peca por defeito. Desenganem-se, o mineiro é ainda mais afável do que conta a sua fama e a sua amabilidade e simplicidade desarmará o mais taciturno turista.
Passeando pelas ruas de Ouro Preto, subindo a ladeira até à Igreja do Rosário, parando para visitar a feirinha de sabão, a Igreja de S. Francisco de Assis, o Museu da Inconfidência - tudo isto intervalado por algumas paragens num buteco, para um cafezinho e um pão de queijo – não passarão cinco minutos sem conversar com alguém. Seja porque pedimos informações, seja porque perguntamos as horas ou simplesmente porque os olhares se trocaram, facilmente uma conversa de circunstância floresce na hora. Vi muitas artes nas mãos de mineiros, da pedra ao barro, do pincel à caneta, da voz ao violão. Mas a comunicação, a empatia e a tradição da oralidade é de fato a grande arte deste povo. Diria até que é esse espírito comunicativo que despoleta o amor por todas as outras artes e que alimenta constantemente a riqueza artística de Minas Gerais.
Em suma, devo dizer que, sobretudo para um turista português, visitar o Brasil obrigará a um confronto com a História, com toda a dor que ela carrega. Não será apenas uma viagem. Será uma experiência, um exercício histórico, social, político e filosófico.
Mas é garantido que o povo brasileiro, com o seu jeito de comunicar e receber, com a sua forma de encontrar alegria no meio da tristeza, fará com que o peso desse passado histórico se esvaia, proporcionando ao forasteiro a leveza e alegria que, apesar de todas as dificuldades, só este país e esta gente podem oferecer.
Que delícia de texto!
Podemos viajar na sua experiência riquíssima de cultura e consequente reflexão.
Obrigado e esperamos mais :)
O que mais aprecio no legado de Portugal ao Brasil Colônia é o nosso belíssimo idioma, atualmente mais sonoro e cantante do que o original da terrinha. Fora isso, achei o presente artigo exageradamente longo e cansativo para ser “assimilado” em pouco tempo. Mas confesso que tenho vontade de um dia conhecer Portugal e seus costumes tão diferentes dos nossos.
cronica muito boa.
Boa mano.
Olá! Ótimo texto!
O Brasil é realmente um pais magnífico com belezas naturais e culturais !
Além dos estados do RJ e Minas Gerais você terá que visitar mais de 24 estados e o Distrito Federal.
Só um pequenino detalhe em referência ao clima de Ouro Preto: a região possui clima tropical de altitude.
Há ainda o uso do nome Brasil expresso em minúsculo. Peço, por gentileza, a correção climatológicos e ortográfica.
Parabéns Pedro. Sou Mineiro, com origem em Braga, onde fixei residência nos anos de 2016 a 2022, sou um descendente de Rodrigues e que hoje assina Braga da Silva, sou de Bom Despacho, em alusão ao Santuário Mariano em Cervães e não há diferenças entre as montanhas minhotas e as montanhas mineiras, em ambas vivemos história.
fiquei encantada com o texto e a forma de falar sobre este entrelaçamento de sentimento e realidade história.
em breve conhecerei Porto e, certamente, me lembrarei dessas palavras
mto obrigada!
sua visão, transcende o nosso imaginário de nativos,que não tiveram a oportunidade de descrever,tão singela e empolgante empreitada pelo nosso gigante ,berço de várias culturas e simbolismos..obrigado por tanta belas escritas.
Que delicia de cronica!.. Fui lendo devagarinho com pena de acabar.. Deliciosa Paraty com suas calçadas e seu mar que adentra! E deliciosa Ouro Petro onde passei a minha adolescencia na Republica Serygi e vagava sozinha pelas ladeiras da cidade em busca de História!