Um dos legados do Cristianismo para a cultura ocidental, certamente, é a lógica da luta do bem x o mal. Para as religiões cristãs, a espiritualidade constitui-se de um embate entre Deus e o diabo, o céu e o inferno, a alma e o corpo, a retidão das virtudes e os abismos do pecado. A compreensão da vida a partir de uma divisão, muito bem demarcada, entre o que pertence ao bem e ao mal ultrapassa os limites religiosos e adentra outras esferas da vida social. Seja em novelas, filmes e séries, seja nos noticiários, seja nos processos eleitorais, seja numa conversa entre familiares, amigos e vizinhos.
Como uma lógica pertencente a nossa cultura, aprendemos a olhar para o mundo por meio desse ponto de vista. Entretanto, nós, seres humanos, e o mundo do qual fazemos parte como agentes sociais é muito mais complexo, ambivalente e contraditório do que pode sugerir uma bipartição entre bem e mal. Seguindo essa lógica, é comum que nós nos coloquemos na posição de quem pertence ao bem e direcionamos o lugar do mal para o outro, que se torna nosso inimigo, uma vez que o mal deve ser sempre exterminado da face da Terra.
Pela lógica do bem x o mal, facilmente, cria-se um inimigo comum, identificado com o mal e, por isso, demonizado, que será capaz de unificar forças advindas de diferentes grupos para combatê-lo. Essa é uma estratégia de guerra, não por acaso, muito utilizada na política. São muitos os exemplos de grupos sociais e povos que foram taxados, por exemplo, de inimigos da pátria, a fim de mobilizar apoios que pudessem dar maior vigor a determinados projetos políticos.
Utilizar essa estratégia implica em construir uma história de heróis e vilões em conflito. Nesses termos, é preciso estarmos muito atentos ao modo como nos contam o que está acontecendo, principalmente, as mídias. Não nos esqueçamos que noticiar é contar histórias (não necessariamente falsas, como nas fake news, mas histórias reais do cotidiano). Toda narrativa é construída com determinados objetivos e interesses e é importante nos questionar sobre eles, para não sermos leitores que, inocentemente, são conduzidos a assumir um determinado posicionamento, sem muita reflexão e discussão.
Nesse sentido, podemos levantarmos uma série de questionamentos sobre a guerra que eclodiu na última semana: será uma guerra da Rússia contra Ucrânia ou uma guerra entre Rússia e Otan? Quais os interesses econômicos que estão em jogo? A quem verdadeiramente interessa essa guerra? Será que não estamos construindo a narrativa da Rússia como inimiga do Ocidente? O que está sendo silenciado? Qual o destaque e o enfoque que as notícias estão dando a essa guerra? Qual a história e os objetivos da Otan? Quais as relações entre Otan e a antiga União Soviética/Rússia? Qual o interesse da Otan em expandir-se para o leste europeu? Quem é Putin? Estaria ele vestindo uma máscara de Stalin, para ser o mais novo herói nacional? Por que essa guerra está acontecendo justamente no início de 2022? E muitas outras perguntas poderiam, ainda, serem feitas.
Como se pode notar, a questão é muito mais complexa do que decidir quem está certo e quem está errado, quem é do bem e do mal. A política acontece na palavra e, por isso, a guerra, como ação militar que visa fins políticos, tem uma dimensão que é da ordem da linguagem. Bakhtin, importante filósofo russo do século XX, define a palavra como arena de conflitos, onde as forças socias se enfrentam mutuamente. Portanto, em tempos de guerra, é preciso sermos leitores atentos das palavras, leitores que não se conformam com a aparência primeira do que nos é dito, que desconfiam, que percebam sutilezas, que desafiam os sentidos que tentam nos impor e constroem outros sentidos mais justos, para respondermos responsavelmente a vida.
Prof. Dr. Paulo Ricardo Moura da SilvaIFMG - campus Ouro Preto. Coordenadoria da Área de Língua Portuguesa.
UNESP - campus São José do Rio Preto. PPG Letras - Doutorado.
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