O mito grego que nos foi legado pela tradição com o nome de Apolo e Dafne, que aos olhos do nosso tempo pareceria ser apenas mais uma história de amor qualquer, envolve, imprevisivelmente, uma contenda entre Eros e Apolo. Eros se vinga de Apolo (ou, na linguagem dos deuses, procura reafirmar seu respeito) após ser ofendido pela afirmação de que suas flechas eram menos poderosas do que as do deus da beleza. Atingido pelo deus do amor por uma flecha com a ponta de ouro, Apolo é tomado violentamente por uma paixão arrebatadora por Dafne, ninfa de belo rosto que estava se banhando desavisadamente pelas redondezas. A pobre Dafne, por outro lado, também não passou despercebida das flechas do Amor. Eros, entretanto, acerta-a com uma seta com a ponta de chumbo, fazendo com que Dafne sinta aversão absoluta a todo desejo romântico. E Apolo põe-se enlouquecidamente a perseguir a filha de Peneu, enquanto ela foge desesperadamente do deus da luz até que, vendo-se sem saída, pede ao pai para transformá-la em um loureiro. Perdendo a amada para sempre, Apolo é inundado pelo pranto, e desde então passa a adornar sua cabeleira loira com folhas de louros.
O que no mito nos salta à vista é, certamente, o confinamento da liberdade que o Amor provoca. Por um lado, alguém desesperadamente apaixonado se move em direção ao objeto de desejo, e se move sempre e incessantemente, pois tem sede de possuir e tem pressa, e cai em sofrimento e em lágrimas quando não consegue apanhar para si o amado. O mesmo amor, por outro lado, pode determinar na liberdade uma medida totalmente negativa para com relação a certo objeto. Esse esgotamento da potência amorosa culmina em desejo de afastamento e separação. Ao término de um relacionamento, por exemplo, muitas pessoas não conseguem mais sequer suportar se deparar com qualquer pista que leve ao objeto de amor apartado. É a potência que se determinou negativamente a seu máximo. E como o amor é um movimento em direção à plenitude, determinar em totalidade negativa um objeto é considerá-lo como carente desta plenitude – e o amor, que é ele mesmo, como diz Platão no Banquete, carente, tem horror ao que é também carente.
Mas e a beleza? Nem a beleza hipostatizada em sua forma suprema seria capaz de anular o efeito de uma flecha de chumbo? Apolo promove uma liberdade amparada na beleza de tal forma que, ao contrário do desejo coercitivo do amor, não obriga o contemplador a se acercar para possuir o objeto contemplado. Na beleza o sujeito permanece em cálida contemplação do objeto belo, respeita a liberdade do objeto belo, aproveita o doce júbilo de sua vista e se felicita absolutamente em sua presença, sem o tomar para si. Logo em seguida, após a partida do belo, a beleza condensa as suaves lembranças do objeto para si, como leves folhas de louro sempre a adornar a cabeça de Apolo – isto é, a beleza nos é um descanso.
* Axel é um pseudônimo, ele é um amante de mitos.
Amei seu texto!
Você poderia tecer uma análise do mito de Apolo e Jacinto? Podemos falar de beleza e amor nesse caso?
Que sutileza em nos mostrar, de forma quase que poética, mas assertiva, verdades com as quais nos deparamos todos os dias, mas nem sempre enxergamos.
O Axel nos convida a uma reflexão muito interessante sobre a maneira distinta de “agir” da beleza e do amor. Acabei associando o mito às forças duais presentes nas escolhas que fazemos perante ao ego. Muito bom, gostei bastante!