“Redes Sociais: Uma reflexão histórica acerca do público e privado em tempos caóticos”, por Breno Vinícius

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Por Breno Vinícius Publicado em 25/09/2019, 18:30 - Atualizado em 26/09/2019, 19:38
Breno Vinícius é historiador pela UFOP, ouro-pretano e um entusiasta das adversidades humanas. Siga no Google News

Inauguro essa coluna com uma reflexão sobre o uso das redes sociais no mundo contemporâneo. Hoje em dia é praticamente impossível se sentir incluído no mundo se você não possuir uma rede social, seja ela qual for. A reflexão que pretendo apresentar se dá no sentido de como o uso das redes sociais, apesar de úteis para muitas coisas, também nos provoca desconforto emocional e social através dos limites, hoje em dia confusos, do público e do privado.

Iniciamos então com a problemática: o que é público e privado? Retomarei então um pouco da História humana para esclarecer esses campos (que nem sempre coexistiram). De início não havia tal distinção entre público e privado, por alguns motivos, mas em geral pela ampla crença em um/uns Deus(es). Sejam crenças monoteístas ou politeístas, era constante a noção de um Deus presente em tudo e em todos, ou seja, o meu Deus estava presente em mim, na minha consciência, e também nas coisas em minha volta, na natureza.

O que consolida o princípio de que tudo é visto, tudo é público. Trazendo um exemplo mais perto das nossas crenças, o Cristianismo por exemplo, irradia a ideia de que no juízo final eu pagarei pelos meus pecados, por mais que esses pecados tivessem sido cometidos escondido de todos. Tudo é clarividente, tudo é visto, tudo é público.

No alvorecer da modernidade, que entendemos aqui a partir de meados do século XV, esse cenário se modifica. Agora existe um campo onde só minha consciência subjetiva está presente, ninguém adentra lá, é um espaço privado, subjetivo em que penso em possibilidades, e de outro lado há um espaço público, de interface com o outro onde me mostro para ele, onde me apresento, não da forma crua da essência do meu ser, mas intencionalmente construído com vestimentas necessárias para cada ocasião, penteados, perucas, maquiagens, modos de agir, o que conhecemos hoje por etiqueta (vale ressaltar que nesse momento, a partir do século XVII, é que eclode aquele arquétipo de nobreza europeia que vemos muito em filmes, quadros de época, etc, com perucas, vestimentas de mais alta sofisticação, etc).

Então, em síntese, agora eu tenho um campo privado da minha subjetividade, desejos, essência, consciência, liberdade, e um campo em que presto esclarecimentos, o campo público, de interface com o outro, do trabalho, da política, da negociação. Como exemplo clássico da separação desses campos, público e privado, é interessante retomarmos a obra “Hamlet” de William Shakespeare, publicada no início do século XVII.

Para quem não conhece ou não se lembra dessa peça do escritor inglês vale um pequeno resumo: se passa na corte dinamarquesa no século XVI, onde o príncipe Hamlet é avisado pelo fantasma do seu pai (o qual havia morrido dias antes) que o seu tio era responsável pela sua morte, e fez isso para tomar o trono dinamarquês e também a sua esposa, a rainha da Dinamarca, então Hamlet deveria vingar a morte do seu pai eliminando o tio que era agora o rei da Dinamarca.

Porém, como um típico homem moderno, Hamlet não queria confrontar seu tio publicamente (um nobre medieval provavelmente faria isso, mas um nobre moderno, não), então Hamlet decide fingir que enlouqueceu e a peça se desenvolve diante do Hamlet público, louco, onde todos se espantam com atitudes dele que muitas das vezes é apenas “dizer a verdade” e o Hamlet privado, que o tempo todo reflete sobre a vida, suas escolhas, seus desejos, seus medos, em grandes monólogos.

A separação desses dois campos é um dos aspectos que nos tornam indivíduos modernos. Porém com o advento avassalador das redes sociais acabamos por tornar algumas coisas confusas. Entre elas essa noção entre público e privado. Estamos num momento típico da História humana em que nós próprios estamos quebrando a barreira entre o público e o privado, e podemos constatar isso também no uso cotidiano das redes sociais.

Estamos abrindo nossas janelas e nossas portas para que o mundo lá fora adentre nosso universo privado. É muito comum nós mesmos, ou pessoas que temos em nossas redes sociais postarem fotos de momentos em que se enquadram sistematicamente no âmbito privado da vida. Seja quando postam a foto do prato no almoço, seja quando postam foto de um momento de relaxamento numa noite depois do trabalho. O fato é que estamos tornando público o nosso privado. Mas aí tem um grande problema, uma arapuca!

Ao tornar o íntimo público temos a sensação de autenticidade, ou seja, a pessoa está retratando o auge da subjetividade dela, isso então deve ser verdadeiro. Não damos muita credibilidade a um santinho de político com uma foto muito bem elaborada, e um texto de promessas atrás, pois sabemos que como um objeto feito pra ser público ele é provavelmente imbuído de mentira. Porém quando alguém tira a foto em casa deitado e descansando a noite, e posta ela nas redes sociais logo nos vem aquela sensação de “verdade” de “autenticidade”.

Nos deparamos com uma foto dessas nas redes sociais e pensamos “nossa como ele(a) trabalha tanto que agora merece um bom descanso”. Mas aí está o problema que mencionei antes! Até que ponto essa foto do íntimo da pessoa não foi feita pra ser algo público e estamos simplesmente caindo numa falsa sensação de verdade? Ou seja, quantas fotos e em quantas posições aquela pessoa precisou tirar para postar aquela foto ideal? Quando falo ideal é propositalmente pois aquela foto não é o real da vida da pessoa, e sim o ideal, o que aquela pessoa quer que vocês vejam da vida dela, não é o privado em sua essência, mas a tentativa de fazer com que pareça.

Por isso as redes sociais acabam por trazer incômodo a muitas pessoas. Vemos o dia todo pessoas num suposto auge da felicidade privada mostrando suas fotos para nós, e nós expostos a essas fotos criamos o hábito de tomá-las como verdade, como se realmente a vida da pessoa fosse aquilo retratado ali. E isso nos incomoda, nos provoca a sensação de não realização pessoal e social.

Por isso proponho essa reflexão, estamos num mundo caótico em que embaralhamos (ou fingimos embaralhar) o público e o privado, e muitas das vezes caímos nas armadilhas que isso nos proporciona. Sabemos que a vida é também um teatro, mas é incômodo pensar estar nos bastidores quando na verdade estamos fazendo parte da cena.

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