Prosa na Janela: ‘O último nó’, por Roberto dos Santos

Leia mais um conto inédito de Roberto dos Santos no JVA.

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Por Roberto dos Santos Publicado em 25/04/2024, 11:40 - Atualizado em 25/04/2024, 11:40
A escrita de Roberto dos Santos, colunista cativo do JVA, transita entre a prosa, o conto e a crônica. Crédito — Arquivo pessoal. Siga no Google News

Evelyn tinha um amigo, na verdade, seu melhor amigo. Ele se chamava Dorival. Era a única pessoa que ela confiava, e por isso contava seus segredos mais íntimos.

Evelyn tinha 38 anos, Dorival 36. Eles se conheceram na escola quando estavam no 7° ano. Ela estava repetindo de ano, não havia conseguido passar no ano anterior devido a sua grande dificuldade em matemática, e de se relacionar com outras pessoas. Evelyn pensava que não era inteligente, afinal só ela e mais um colega havia sido reprovado.

Ela já estava desanimada, se sentindo uma intrusa no ambiente escolar, pensava que não havia mais jeito. Estava disposta a abandonar tudo, certa que o ambiente acadêmico não era seu mundo.

Os colegas não diziam nada que a desmerecesse, porém, era a última a ser escolhida nas composições para os trabalhos em grupo. Era “encaixada” em algum grupo meramente pela obrigação de ter que fazer. Nem mesmo a professora procurava compreendê-la nas suas limitações, tinha a convicção de não insistir, entendendo que era um caso perdido, o que fizesse já estava bom, assim pensava sua professora.

Mas enquanto alguns menosprezam os outros, mesmo que nas entrelinhas, outros soerguem simplesmente deixando fluir o melhor de si, tendo essa prática como forma natural de vida. Assim foi Dorival para a vida de Evelyn.

Tudo começou a mudar para Evelyn quando foi designada a fazer um trabalho de Geografia junto com Dorival. Depois de escolhido os grupos, sobraram os dois, e a professora sugeriu que fizessem juntos o trabalho.

Evelyn estava tão machucada no seu interior que logo disse a Dorival que achava que não conseguiria ajudá-lo, e que deveria fazer sozinho. Mas a insegurança dela expressa nas palavras proferidas, não mudou nada em Dorival que prontamente respondeu:

– Eu te ajudo e você me ajuda. A gente consegue.

As palavras de Dorival soaram para Evelyn como afagos na alma. Ela sorriu com a alegria de quem se sente notada e valorizada. Ele mesmo que ainda jovem, tinha dentro de si sentimentos de bondade bastante aguçados.

E assim se uniram no propósito de realizar a tarefa solicitada pela professora.

O primeiro ato, antes do início propriamente dito, foi se perguntarem sobre o que cada um gostava e não gostava de fazer, dentro e fora da escola.

Evelyn disse que gostava de escrever, ler livros de poesias, ouvir música, mas que tinha algo dentro dela que não sabia explicar. Um medo inexplicável que não tinha razão de ser e nem por quê.

Dorival ouviu tudo em silêncio e disse apenas umas poucas palavras:

– Nossa, que lindo isso!

Eu gostaria muito de ser como você, ler e escrever com essa vontade. Seus olhos brilharam quando falou dessa predileção.

Uma coisa temos em comum, que é o interesse pela música. Adoro ficar olhando para o nada, tendo ao fundo uma suave canção.

Evelyn ficou feliz da vida. Pela primeira vez alguém quis ser como ela, enaltecendo pontos positivos percebidos de pronto pelo colega.

Sobre o medo inexplicável mencionado por Evelyn, Dorival falou que tinha também alguns medos, e que todos temos medos. Que ela poderia ficar tranquila.

A jovem estudante ficou de novo em alto astral, afinal o novo colega não se dirigiu a ela com comparações e julgamentos.

Mas atenta aos detalhes da conversa, Evelyn disse a Dorival:

– Você ainda não falou do que gosta e não gosta.

Dorival então sorriu e entendendo que não havia outra alternativa, começou a falar de suas particularidades:

– Eu sou um pouco tímido, gosto de matemática e tudo que tem fórmulas, encaro essas coisas como se fosse um joguinho ou quebra cabeças. Acabo-me divertindo com a matemática, mas sou um pouquinho preguiçoso, não gosto muito dessas coisas de ler e escrever.

Depois de falar de suas aptidões e simpatias, Dorival olhou para Evelyn e disse:

– Já sei como vamos fazer nosso trabalho. Nós pensamos juntos o que vamos fazer e você escreve. Eu vou desenhar os mapas que vamos precisar e depois montamos o trabalho.

Quando formos apresentar, você apresenta a parte escrita e eu apresento os mapas. Vai dar tudo certo.

E assim foi feito, apresentaram o trabalho, mesmo com as pernas tremendo como varas verdes.

Evelyn foi a que mais ficou feliz. Pela primeira vez sentiu-se parte de alguma coisa. Alguém dividiu com ela um feito, e a colocou como uma pessoa importante e útil dando-lhe igual protagonismo.

Evelyn conseguiu melhorar na escola e junto com seu novo amigo seguiram juntos até se formarem no ensino médio.

A partir daí os caminhos tomaram rumos diferentes. Cada um seguiu no passo das suas aptidões. Dorival se formou em estatística e mudou de cidade atendendo a um chamado profissional.

Evelyn se formou em Geografia e Letras, suas paixões acadêmicas. No último ano de estudos em Geografia, sua primeira graduação, ela iniciou investidas no sentido de saber por onde andava Dorival. Ao localizá-lo convidou-o para sua formatura.

Um jantar no dia anterior a festa de formatura, foi a forma encontrada por eles para colocarem a prosa em dia. No dia da festa não haveria tempo para conversas, afinal numa formatura seria muito requisitada para felicitações, fotos e outras coisas correlacionadas.

Já no restaurante escolhido, Evelyn disse a Dorival:

– Muito obrigada por ter aparecido em minha vida, bendito aquele dia no colegial, em que apareceu para fazer o trabalho comigo. A minha formatura tem relação direta com aquele dia, só está sendo possível porque Deus te colocou no meu caminho.

Após agradecer a Dorival, Evelyn continuando a conversa revelou uma coisa muito importante:

– Eu estava decidida a tirar a minha vida no dia seguinte ao que te encontrei. Só não tinha a noção de como ia fazer. Estava me sentindo deslocada nesse mundo, não achava lugar para mim. Tirar a vida não era o que eu queria, mas era a solução para tudo, assim eu pensava.

Na escola, os olhares eram de indiferença, parecia que estar viva ou morta era a mesma coisa. Os garotos me ignoravam e davam toda a atenção para as outras meninas. Fora da escola eu não tinha amigos. Era como que a cada dia um nó ia sendo dado em torno da minha existência. O nó da rejeição, da indiferença e outros tantos “nós”. Naquele dia em que te conheci estava prestes a dar o último nó e você chegou como um anjo e me valorizou, me fez sentir útil.

Por causa disso não dei o último nó, que foi desfeito pela sua generosidade e bondade, que fez aflorar em mim o desejo de viver.

Dorival ficou emocionado e atônito quando se deu conta do que estava prestes a acontecer.

Embora soubesse que Evelyn estivesse muito abalada emocionalmente, jamais pensara que uma coisa dessas povoava sua imaginação.

E Dorival prosseguiu:

– Olha, Evelyn, eu ainda hoje continuo com meus medos, mas não deixo que eles interfiram a ponto de me desestabilizar. Para isso eu tenho algumas certezas, e uma delas é que o que há dentro de mim é só meu, só eu posso mudar, ou permitir que alguém acesse. Fora de mim não tenho controle, então procuro não absorver principalmente aquilo que é tóxico para mim.

Finalizando a conversa Evelyn agradeceu mais uma vez a Dorival, e expressou em viva voz o desejo de que apareça um “Dorival” na vida de cada um que está na iminência de dar o último nó. E que também as pessoas não sejam cruéis no seu dia a dia e ajam de forma que não existam os “nós”, mas somente pensamentos e ações que promovam o outro a condição de o ápice, obra-prima da criação.

Que elas nunca subestimem e nem quantifique o que as pessoas sentem, mesmo porque ninguém sabe verdadeiramente o que se passa dentro de cada um. Que troquem o nó por um abraço, o julgamento pela compreensão e seja como o Dorival, salve uma vida empreendendo no seu existir práticas humanas com seu semelhante. Foi por isso que ele salvou uma vida sem saber que ela estava por um fio. Simplesmente vivendo e deixando viver.

– Evelyn fez questão de pagar o jantar e propôs um brinde para o final.

Um brinde a vida, o suicídio não é uma solução. Somos todos importantes e o grande barato são as diferenças, porque são elas que nos tornam únicos.

Vamos pensar nisso?

2 Comments

  1. Maria Aparecida 25/04/2024 em 13:39- Responder

    Parabéns Roberto sempre sensível
    e talentoso , suas prosas são lindas!

  2. Wanderléia 29/04/2024 em 07:05- Responder

    que perfeito esse texto encantada com essa riqueza de talentos

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