Prosa na Janela: “Nos caminhos da fé”, por Roberto dos Santos

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Por João Paulo Silva Publicado em 26/09/2018, 19:58 - Atualizado em 02/07/2019, 00:54

Roberto Santos, 47 anos, nascido em Dores de Guanhães, chegou ao Distrito Ouro-pretano de Antonio Pereira em 1979. É porteiro na Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e tem uma sensibilidade peculiar na apresentação de seus textos. É casado com Márcia, que é a aguerrida diretora da Escola Municipal Alfredo Baeta e têm o filho Antônio, de 13 anos.

Nas tardes de domingo lá estava ele a desfilar suas habilidades. O campo em que jogava futebol era as margens de um riacho onde os garimpeiros locais extraiam ouro. Uma atividade alternativa para aqueles que não trabalhavam nas mineradoras. Muitos sustentavam suas famílias com o dinheiro que ganhavam na extração desse metal precioso.

Além do minério de ferro e ouro, aquelas terras guardavam outras riquezas, sendo o seu povo a maior de todas.

Seu nome era Nilson, mas se assim fosse chamado, poucos saberiam de quem se tratava, mas quando o chamavam de “Tôco”, o povoado inteiro dizia conhecê-lo. Essas quatros letras pareciam soar como uma senha, não havia quem não o conhecesse.

Tôco ainda hoje vive em Antônio Pereira e quando integrava o escrete local, figurava entre os destaques do time.

Quando estava em campo, os adversários tomavam suas precauções, pois sabiam que onde a bola caísse o chute sairia com perigo.

A perna direita e a esquerda desferiam arremates certeiros que o diferenciavam dos demais. Não era a força que caracterizava a precisão, mas o jeito de bater na bola era que determinava seu destino.

O cabeceio também era uma qualidade a somar dentre outras tantas. Quando tomava impulso em preparação para o cabeceio, se houvesse uma forma de parar o tempo naquela hora, iríamos perceber que os olhos estavam abertos, e a inclinação de seu corpo dava a entender que reverenciava aquela esfera de couro, e aquele milésimo de segundo era suficiente para que ambos estabelecessem entre eles uma relação eterna de amor.

Quase sempre a bola ia parar no fundo da rede e as mãos fechadas se projetavam em direção ao céu e o soco no ar, atitude característica de suas comemorações, se juntava aos brados de alegria dos pereirenses e aquele cantinho de Ouro Preto chamado Antônio Pereira era pura felicidade.

A habilidade nas cobranças de falta também lhe era creditado como ponto a destacar. Marcava bem e saia para o jogo com desenvoltura e irreverência.

Os gramados da região sentiram o toque de seus pés, mas Antônio Pereira e Vila Samarco o teve em ação por mais vezes.

O tempo da bola passou, só não passou a determinação e a leveza que dava a vida.

Mas não era só o futebol que movia seu existir, paralelamente outras coisas iam acontecendo a sua volta. Desses acontecimentos apropriou-se dos ensinamentos, e com isso o tempo foi tecendo em si a experiência que o fez homem. Nesse percurso fez muitos amigos, e dia a dia escrevia no livro da vida páginas memoráveis. No curso de seu caminhar recebeu do criador uma família para cuidar, ergueu a casa e juntos com os seus, fez dela seu lar. Ali foi vivendo o que a vida lhe apresentava, e entre um dia e outro já se passaram cinquenta primaveras.

O que foi aprendendo com os acontecimentos, ele foi guardando em alguma parte do seu coração, de forma que nada se perdesse.

A esposa seguia lado a lado, no mesmo passo. As filhas avançavam e davam a suas vidas uma dinâmica que lhes permitiam o crescimento pessoal capaz de contribuir com o mundo.

Assim a vida fluía com normalidade e amor.

A essa altura da vida suas ações davam conta de uma pessoa dotada de certo equilíbrio, onde o corpo e a alma já se encontravam em grande harmonia.

E nessa estrada trilhada há meio século, surge talvez à batalha mais difícil de seu caminhar. As pernas habilidosas que o fez notável no tempo da bola começaram a mostrar sinais de cansaço. Aquelas pernas que o levaram a inúmeros lugares não queriam mais andar. Os seus passos já estavam cansados, alguma coisa insistia em fazê-lo parar.

A amputação das pernas foi inevitável, ao invés de ficar menor em decorrência da perda dos membros, ele cresceu ainda mais.

A família que Deus concedeu a ele para seguirem juntos no caminho do céu são suas pernas hoje, e continuam caminhando com ele e por ele.

Como acréscimo, a peneira do tempo em seus minúsculos furos, cuidou de trazer até ele os amigos que fez no tempo da escola, da bola, do trabalho para dar passos com ele.

Hoje não tem mais as duas pernas, fato que não lhe impediu de avançar na estrada vida.

Enquanto todos o cercavam de amor e atenção demonstrando estar com ele e prontos para transpor juntos mais esse obstáculo de sua vida, descobri que a força maior vinha dele. Os corações entristecidos tentavam alegra-lo, mas ironicamente, era o coração dele que enchia os outros de alegria. Um gracejo, uma piada e o ambiente se tornava leve e perfeitamente suportável.

Sem nenhum questionamento, se aprontava para fazer o que tinha de ser feito. Nenhuma palavra pronunciou contra Deus.

Demonstrou que esses fatos inevitáveis eram obstáculos que surgiram em seu caminho e como todos os outros necessitavam serem vencidos.

Apresentou-se diante do problema de pé, e mesmo ficando sem as pernas manteve-se ereto. Ensinou a todos que estar de pé é algo muito maior que equilibrar- se sobre essa plataforma situada no prolongamento da perna.

As dificuldades ele vem driblando, afinal era bom nisso no tempo da bola.

Tudo permanece dentro dele, inclusive a irreverência. A mais recente descoberta nesse tempo difícil foi à fé, uma fé gestada dentro de si ao longo da vida, na certeza de que acima de tudo existe um ser maior do que todas as coisas, Deus.

Um homem que mais uma vez sentiu Deus, não por isso ou aquilo, mas por saber que Ele é bom o tempo todo. Assim como em tempos de glória ele o viu, em tempos difíceis também o teve diante de seus olhos.

Sua vida hoje é um ensinamento, uma lição de como ver Deus nas horas difíceis e nas horas boas também.

Saber que em tudo devemos dar graças ao criador. E eu que me recorri às palavras para mostrar as entrelinhas desta história, tenho a honra e a graça de dizer a todos que o sangue que corre nas veias desse ser iluminado, também flui em mim. Que o super-herói de cabelos brancos que o buscou no hospital quando nascera também esteve comigo na minha vez de chegar.

A mesma mão que o embalou também me acolheu nos braços.

O homem em questão é meu irmão e juntamente com a esposa, filhas e amigos vão vencendo a tempestade e eu estou cheio de alegria e esperança, pois a cada dia eles me ensinam a viver e me mostram o céu para onde quero chegar um dia.

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