Prosa na Janela: Leia ‘Do outro lado da porta’, por Roberto dos Santos

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Por Roberto dos Santos Publicado em 30/10/2019, 10:15 - Atualizado em 30/10/2019, 10:15
Roberto Santos, 49 anos, nascido em Dores de Guanhães, chegou ao Distrito Ouro-pretano de Antonio Pereira em 1979. É porteiro na Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e tem uma sensibilidade peculiar na apresentação de seus textos. É casado com Márcia, que é a aguerrida diretora da Escola Municipal Alfredo Baeta e têm o filho Antônio, de 15 anos. Siga no Google News

Bernardo gostava tanto da chuva que um dia ela entrou pela janela de seu quarto e lhe mostrou o caminho da felicidade. Assim ele classificou a visita inesperada recebida fortuitamente por águas salientes vindas do céu.

Quando chovia, gostava de debruçar na janela e sentir as minúsculas gotículas de chuva que o vento fazia questão de levar até ele.

Confidenciava seus segredos e sonhos, tecia versos poéticos e melódicos aludindo à beleza e graciosidade com que a chuva caía. O vento parecia ser o responsável em fazer os caprichos dela, pois enquanto caía, ele parecia toma-la pela mão e direciona-la para onde quisesse ir.

Foi assim que numa madrugada de sábado ela veio visitar Bernardo.

Entrou pela fresta da janela centenária, trazida pelo vento, desceu rente a parede e mergulhou por outra fresta existente na junção de duas tábuas que compunham o piso de madeira do seu quarto.

Ele só percebeu que a chuva estava lá, quando acordou com o barulho, e com os respingos de chuva caindo sobre ele parecendo querer acorda-lo. Abriu a janela e viu a Rua dos Paulistas onde morava, sendo lavada por águas torrenciais que caiam do céu. Ouviu ainda o barulho da enxurrada que descia a Rua do ouvidor, vindo da Praça Tiradentes. Quando decidiu fechar a janela, já estando com o rosto umedecido, notou um filete de água correndo pela parede, e sumindo no piso antigo de tábua que sustentava a cama e outros móveis. O piso não estava molhado. A preocupação de Pascoal era saber onde foi parar toda a água que entrou em seu quarto, e prevenir problemas futuros.

Observou o local por onde ela escoou e foi dormir. De manhã tomaria as providências, após minuciosa checagem.

A chuva parou e o restante da madrugada transcorreu na mais completa calmaria.

Como era domingo e folga do trabalho, assim que o sol entrou no seu quarto pela mesma fresta em que a chuva o visitara, levantou mais cedo do que de costume e foi tomar café. Seus pais estranhou o fato, já que aos domingos ele levantava bem mais tarde. Explicou aos pais os acontecimentos da noite, pediu licença para voltar ao quarto e tomar as medidas que fossem necessárias.

Primeiramente vedou a fresta da janela para evitar que a chuva entrasse novamente, depois removeu um pequeno pedaço de tábua do chão e constatou que por baixo da madeira estava seco. Intuiu rapidamente que deveria ampliar o perímetro de checagem, e retirou mais três tábuas paralelas.

O que seus olhos viram o deixou atônito. Tanto tempo morando ali, e só agora descobrira algo tão interessante.

Tudo estava seco, ele então se sentou e ficou olhando tentando imaginar o que seria aquilo na sua frente. Qual o propósito da existência de tal coisa?

Bernardo havia acabado de descobrir o caminho feito pelas águas da chuva após ter entrado em seu quarto.  Ele não sabia se havia sido a primeira vez que acontecera aquilo, tudo estava tão interessante que chegou a pensar que a chuva estivesse de propósito tentando dizer alguma coisa, e imaginava quais seriam as novidades ocultas naquele cenário inusitado.

Sentado no chão de madeira do seu quarto ele olhava para baixo e via uma porta de madeira de formato espesso, como as portas das igrejas antigas de Ouro Preto. Ele não tinha a mínima ideia do que havia do outro lado. Entre ele e a porta tinha doze degraus.

Ele desceu vagarosamente um por um, e diante da porta espessa girou a maçaneta rústica diferente de todas as outras que já tinha visto, e deu de cara com a escuridão. Fez o caminho de volta, indo até uma cômoda ao lado de sua cama e pegou uma lanterna. Desceu de novo degrau por degrau direcionando o facho de luz ao breu a sua frente.

Depois de abrir a porta e entrar, deu cinco passos guiados pela luz da lanterna, e encontrou outra porta igual à primeira.

Abriu esperando encontrar mais escuridão, mas para sua surpresa o sol brilhava intensamente.

Ainda no lado escuro da porta, com receio de ir adiante onde o sol brilhava, ficou de olhos fixos num banco de pedra em meio a um jardim muito bem cuidado. Nele uma linda mulher de feições simples, observava os arredores onde os pássaros, borboletas e flores interagiam.

Permaneceu parado com medo de transpor o portal que dava acesso ao lugar, só não foi embora porque ficou seduzido pela grande beleza da mulher sentada no banco. Cedendo aos encantos da irresistível mulher, caminhou na sua direção. Já próximo dela, olhou para traz e viu apenas um portal de pedra sabão, como que um desenho na parede.

Intercalando olhares entre o portal e a bela mulher, aproximou-se e fez uma saudação.  Ela assustada gritou diante da presença de Bernardo.

Ele então implorou que se acalmasse com medo de alguém aparecer. Ela se distanciou um pouco e quis saber como havia passado pela segurança, pois a vigilância do local era muita severa, e chegar ali sem ser notado era quase impossível.

Pascoal ficou confuso sem saber onde estava e perguntou a mulher o nome dela e que lugar era aquele.

Perguntas de parte a parte, demonstrava que o clima ainda era tenso entre ambos.

Ele disse o seu nome, e ela em resposta disse se chamar Olga.

O lugar que estavam era o jardim da casa dela.

Ele mostrou no paredão de pedra o portal de onde saiu, Olga sorriu educadamente, porém cética quanto à fala de Bernardo. Ele notou no olhar dela certa descrença, e relatou tudo sobre o episodio da chuva, o que parece não ter mudado nada.

Sem se aproximarem, guardando uma distância que julgavam seguras, pelo menos para ela, conversaram. Olga já estava mais a vontade, porém ainda receosa. Algo em Bernardo a fazia crer que ele era um bom homem, já ele percebera nela muito mais que encantamento, estava inteiramente à vontade.  O único receio era de ser surpreendido naquele lugar e ser punido por isso.

Ele então se despediu dizendo que precisava ir embora, e pediu que observasse o portal para entender de onde havia vindo. Complementou dizendo que voltava depois, e que aquele deveria ser o segredo dos dois.

Olga ficou olhando, enquanto Bernardo seguia para o portal. Ele estava tremendo de medo admitindo a possibilidade de dar errado e ficar preso para sempre naquele lugar.

Diante do portal, fechou os olhos e deu passos na direção do paredão de pedra, ao abri-los viu que estava naquele pedaço escuro que ligava os dois lugares. Com a lanterna acesa passou pela primeira porta, depois a outra e subiu os degraus de volta ao quarto.

Apressou-se em olhar a hora para ver quanto tempo havia permanecido do outro lado da porta. Percebeu que havia se passado apenas um minuto, correu até a cozinha e lá estavam seus pais conversando na mesa.

Manteve tudo em segredo e voltou para o quarto para ajeitar as coisas. Em seu rosto estava estampado uma profunda alegria, e em seu coração uma enorme ansiedade em rever Olga. Nutria ainda a desejo de que a mulher do outro lado da porta tenha testemunhado o momento de seu retorno.

 A esperança que no próximo encontro tudo fosse diferente era talvez o maior de todos os desejos. 

Na segunda feira quando voltou do trabalho, fez o caminho do portal esperando encontrar Olga. Esteve no jardim da casa dela e não a encontrou. Chovia naquele dia e nos outros dois que esteve lá.

Ficou um dia sem ir, no outro voltou, e dessa vez sol de fim de tarde brilhava intenso e lindo. Ela estava no mesmo lugar, como na primeira vez. Ao vê-lo sorriu e foi ao seu encontro. Abraçaram-se sem medo, movidos por um sentimento que acreditavam ser saudade, mas na verdade era amor. Seus corações ardiam, a respiração de ambos estava acelerada, e no abraço envolvente o desejo de eternidade.

Depois desse encontro Bernardo contou a Olga toda a sua vida. E ela explicou que não foi no jardim nos dias passados, devido à chuva, declarando-se amante do sol.

Bernardo disse que amava a chuva, e que foi ela que o fez encontra-la. Transpôs o portal com Olga e pela janela de seu quarto a fez conhecer a Rua dos Paulistas, cantinho de Ouro Preto onde morava. Inúmeras vezes fizeram o caminho entre os dois lugares. Olga já sabia que se tratava de Ouro Preto, fora informada por Bernardo que ainda não havia encontrado um jeito de passear com ela pela cidade.

Quando perguntou a Olga como se chamava o lugar onde morava, ela disse Vila Rica, um lugar cheio de gente em busca de riqueza e poder, lá tem muito ouro.  As casas são iguais a essas, tem uma montanha igual aquela. Era um quadro na parede que retratava o Pico Itacolomi.

Foi aí que Bernardo entendeu que a passagem secreta que a chuva ajudou a encontrar era a ligação entre o presente e o passado de Ouro Preto.

Só não conseguiu ter certeza se a chuva veio mesmo mostrar-lhe a passagem secreta ou para encontrar o sol de Olga.

Quanto a Bernardo e Olga, temendo a incompreensão do mundo e, por conseguinte a separação ficou nessa viagem entre uma era e outra, aproveitando o minuto que lhes era concedido para amar.

Pouco a pouco iam descobrindo formas de interação nos dois mundos e maximizando a relação. Não revelaram a ninguém o segredo que dividiam a única coisa visível a todos, era a felicidade em seus rostos e o sorriso que nunca se desfazia.

O amor que nutriam, um pela chuva, outro pelo sol, se tornou secundário, pois dentro deles vivia o maior dos amores.

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