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“O cadáver de uma amiga”, por Márcio Messias Belém

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Por Márcio Messias Belém Publicado em 21/12/2021, 16:53 - Atualizado em 21/12/2021, 16:57
Inclusão
Foto – Márcio Messias Belém. Crédito – Arquivo pessoal. Siga no Google News

– Essa tarde assisti ao cadáver de uma amiga; visão terrível e desalentadora: a velha e vistosa mangueira, poeta centenária, que declamava mangas doces e suculentas, abrigo a todas as formas de passarinhos e insetos, sombra e frescor contra o árduo sol, e que cantava canções quando o vento trazia a chuva.

Sim, a amiga verdejante, que residia no terreno dos fundos antes que os muros fossem projetados e as casas construídas, foi impiedosamente abatida a golpes de motosserras e jogada ao chão por pessoas ocas e opacas. O mundo é isso: uma coleção de gentes ocas e opacas que não tem respeito algum pelos moradores antigos: as árvores, os pássaros e os bichos de todos os tamanhos.

Da janela que me permitia vê-la e com ela me comunicar através do sentido dos poros, assisto a sua carcaça despedaçada e dividida em várias partes e galhadas; o cheiro de seu perfume adocicado me invade a sala: mas não é um cheiro que interpreto como sendo bom. Apesar de ser o perfume de leite das mangas, tem, neste momento, a tonicidade de odor da morte, que as pessoas ocas e opacas impõem as árvores e a vida que coexiste entorno dela.

Para exemplificar, percebi um gavião se sentindo perdido no vazio que a árvore deixou: coitado, quase acertou uma parede ao procurar parte da copa para pousar, como lhe era de costume fazer. Outros pássaros silenciaram o canto: não estão gorjeando; não sei se isso é, de certa forma, algum protesto contra o ato vil, ou se é a triste resignação que nos abate.

O silêncio imposto pelo concreto das construções e degradações urbanas é uma fala violenta que nos atropela e despedaça. Quem me dera as pessoas tivessem medo de matar uma árvore tanto quanto de passar por debaixo da escada! Pelo menos, é cientificamente comprovado que se matar uma árvore, de alguma forma, se atrai o azar.

Sobre o autor

Filho de pais surdos, o filósofo carioca Márcio Messias Belém se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa em verso para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade, a inclusão.

2 Comments

  1. Márcia Nunes Duarte 03/08/2022 em 23:00- Responder

    Lindo …gostei das metáforas..árvore como poeta que declamava mangas…abrigo de pássaros …cantando canções…me transportei para a época em que eu da minha janela conversava com uma árvore e escrevia poemas aí por do sol…eu tbm tenho as árvores por amigas

  2. Márcia Nunes Duarte 15/08/2022 em 23:24- Responder

    Me surpreendeu o título do texto!

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