Leia “Sentimentos coletivos”, por Hércules Tolêdo Corrêa

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Por João Paulo Silva Publicado em 22/11/2018, 17:00 - Atualizado em 02/07/2019, 01:49

Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas.

Cada um tem seu próprio estado de espírito individual, sabemos bem disso. Por vezes acordamos tristes, às vezes estamos mais alegres. Temos também nossas temporadas, mais ou menos longas, em certos estados: uma melancolia que se arrasta por uns tempos ou estados efusivos que se prolongam. Mas eu gostaria de falar hoje de emoções coletivas, como essas que têm nos afetado nos últimos meses, quando um Brasil que por alguns anos vinha dando sinais de que estaria se transformando em uma nação bem desenvolvida, moderna, progressiva, começou a demonstrar que tem um povo ainda muito conservador, diríamos “careta” mesmo – gíria que tem perdurado por tanto tempo na boca dos jovens brasileiros, desde os anos 1970. Um Brasil careta que mostra sua cara, um Brasil elitista e cheio de preconceitos: lugar de pobre e preto não é na sala de visitas, é na cozinha, nas portarias dos prédios, dos condomínios de luxo, nas ruas, ocupando funções de gari, ambulantes e clamando por uma sobra de comida.

Nas duas últimas décadas, as universidades públicas brasileiras não eram mais campi pouco coloridos, com raros carros nos estacionamentos porque o número de vagas era pequeno, e com muitos brancos nos corredores, salas de aula e laboratórios. As universidades estavam (ainda estão, por enquanto) cheias de carros nos seus estacionamentos e transitando em suas ruas, a fila do bandejão tinha (ainda tem, por ora) gente de toda cor (dos descendentes de alemão aos pretos de vários tons, passando por indígenas e seus descendentes, homens e mulheres do campo, com suas peles castigadas pelo sol e não apenas pelo bronzeamento das nossas praias maravilhosas ou das câmaras de bronzeamento artificial).

Nos últimos anos, bares e restaurantes estavam cheios de homens, mulheres e até mesmo transexuais (confundindo a cabeça daqueles que não dão conta de pensar de forma não binária) de várias “tribos”. Havia famílias tradicionais com um menino e uma menina ou aqueles pais que optam por um só filho para dar a eles melhores condições, mas havia também, aqui e ali, dois pais homens, barbados, com uma criança adotada, ou duas mulheres, mais femininas ou mais “caminhoneiras” – isso nada importa – com sua prole, produzida das diversas formas que a ciência ou a natureza possibilita (cada casal escolhe sua forma).

Até os aeroportos, que nas décadas de 1980 e 1990 ficavam vazios, ocupados pelas poucas moscas que seu higiênico ambiente autorizava, estavam lotados de transeuntes que viajavam pela primeira, segunda ou trigésima quarta vez de avião. Uma professora universitária até confundiu aeroporto com rodoviária certa vez, numa certa rede social aí. Teve gente que criticou muito a postagem da professora, mas também teve muita gente que aprovou. E essa gente começou então a mostrar a sua cara.

O Brasil encaretou. Há muito tempo eu já havia percebido que certo grupo religioso estava crescendo demais por aqui, porque minha sala de aula passou a ter vários alunos dessa “comunidade”. No princípio, ficavam meio calados, reticentes, muitos deles bons alunos, cumpridores dos seus deveres. Vez por outra se recusavam a ler um livro indicado por mim, alguns não iam às peças de teatro que eu sempre procurava levar, para prestigiar essa forma de manifestação artística que eu tanto aprecio. De repente, esse grupo cresceu mais e mais e mais e mostrou a sua cara: “Deus acima de tudo”.

Mas e se eu acredito mais na ciência do que em Deus, porque tenho lido muita coisa ao longo dos meus 54 anos, numa longa trajetória que me fez passar por toda a escolarização básica e toda a formação acadêmica (graduação, mestrado, doutorado, estágios de pós-doc)? Eu também tenho de pensar que Deus está acima de tudo e de todos e que em nome disso eu posso julgar e condenar meu semelhante porque ele tem uma orientação sexual diferente da minha? Porque ele tem uma postura política diferente da minha? Eu não posso querer que as riquezas sejam melhor divididas? Não posso pensar assim? Há pessoas que merecem mais que outras só porque nasceram com a pele mais clara, porque nasceram nos bairros mais nobres, porque seus pais não foram vaqueiros, caminhoneiros, garçons, lanterneiros, mas médicos, engenheiros e advogados? Tem tanta gente de sangue azul assim ainda? Eu pensava que os monarquistas estavam extintos ou que mesmo aqueles europeus que são ainda monarquistas só acreditam em reis que reinam mas não governam, só pela tradição e pomposidade da realeza.

Hoje, vejo um Brasil assim, com sentimentos coletivos. De um lado, pessoas esfuziantes, porque agora estão fortalecidas e esperam por um Brasil melhor, porque no poder estão e estarão, daqui um mês e pouco, pessoas que zelam pelos bons princípios, pela moralidade, pela religiosidade contida (ainda que hipócrita) e que julgam que “bandido bom é bandido morto”, que é preciso rever a maioridade penal e que lugar de comunista é em Cuba.

Caros leitores, eu conheço Cuba e confesso que não gostei muito do que vi por lá. Eu conheço também os Estados Unidos da América e gostei menos ainda do que vi lá, pelos  estados e cidades pelos quais passei. Eu conheço a Espanha, Portugal, a Itália, um pouquinho de outros países europeus e asiáticos, conheço grande parte da América Latina e conheci razoavelmente o Canadá… e principalmente neste último, mas também na Espanha e na França, por exemplo, eu vi condições de vida muito mais bacanas do que as nossas aqui do nosso Brasil tupiniquim, que quer cobrar impostos como a Dinamarca, quer ter universidades pagas como as norte-americanas, mas não quer dar saúde e educação de graça para os mais necessitados. Afinal, melhor que os pobres morram mais rápido, pensam esses. Educação para pobre para que, se o que lhes cabe são os serviços menores em nossas fábricas, escritórios e casas? Ah, sim, precisamos de empregados domésticos que nos levem (para mim não, para quem nasceu rico) café na cama, que limpem nossos banheiros de porcelanato brilhante e que lustrem nossos sapatos. Não estou dizendo que não preciso de faxineira ou de alguém que me auxilie nas tarefas domésticas ou a consertar meu carro, porque mal sei trocar um chuveiro e não sei nem distinguir um modelo de carro de outro, a não ser os velhos e antiquados Fuscas e Kombis. Mas daí a ter alguém à minha disposição o tempo todo, ah, isso é coisa pra gente muito rica, ricaça mesmo, ricona, não é para um professor universitário assalariado, não.

Não sei por que as pessoas que têm um apartamento financiado, um carro novo e algum dinheirinho no banco se consideram elite, classe alta. Rico não é isso, não. Também não é ter quatro imóveis, três carros na garagem ou um diploma de bacharelado em Medicina, Direito ou Engenharia, se não se é detentor de meios de produção, se não precisa trabalhar para viver, ganhar dinheiro mensalmente para pagar as contas. Meus leitores, rico é quem tem muito dinheiro, que não precisa pensar antes de comprar uma passagem para Miami ou para as Ilhas Fidji ou um colar de cristais Swarovski ou mesmo de diamantes.

Por essas coisas, andei acometido de uma grande melancolia, por ver o Brasil retrocedendo, estava angustiado, deprimido. Muitos dos meus amigos, que pensam de maneira parecida com a minha, me consolaram dizendo que esse sentimento não era privilégio meu, que todos os que pensam como nós, num país mais justo com as chamadas minorias, estavam assim.

O sentimento de melancolia não é só meu, ele é coletivo, ele é de todo um grupo, chamado por aí de mortadela e outras coisas que em nada me ofendem. Pelo contrário, até acho graça. Mas é preciso reagir. Levantar da cama. Tomar um café e sair pra vida. O trabalho me espera. Sim, eu preciso do meu trabalho. Tenho alunos para formar, para ensinar, para compartilhar aquilo que aprendi com os livros, durante meus muitos anos de estudo. Tenho muitos textos ainda para escrever, sobre tudo aquilo que aprendo ainda a cada dia, com cada livro que leio, com cada “filme cabeça” que vejo, com cada texto informativo bem produzido que encontro quando navego pelo oceano da internet. Com licença, vou à luta!

Um Comentário

  1. Glaucia Jorge 22/11/2018 em 17:17- Responder

    Muito bom!!!!

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