Leia ‘A saudade é arrumar o quarto do filho que já morreu’, pelo professor Hércules Tolêdo Corrêa

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Por João Paulo Silva Publicado em 11/03/2019, 10:43 - Atualizado em 03/07/2019, 22:00

Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas. Atenção, puristas: esse texto pode conter expressões populares e ironias!

Desde que ouvi pela primeira vez, ainda no final dos anos 1970,  achei o verso que dá título a esta crônica, extraído da canção Pedaço de Mim, de Chico Buarque,  um dos mais belos e tristes do cancioneiro popular. Quer definição mais contundente da palavra “saudade”, essa palavra que, dizem os pouco entendidos dos estudos linguísticos e metidos a entendidos de todos os assuntos, não se traduz em outros idiomas? Bem, se não se traduz noutros idiomas, não temos certeza, dada a pouca confiança que temos em quem profere o axioma e dado nosso parco conhecimento das línguas estrangeiras do mundo todo… mas que em português, idioma que conhecemos bem, não encontramos ainda uma definição tão poética e tão impactante quanto essa, isso é vero!

Lembro-me de novo desse verso por ocasião da morte do menino Arthur, de 7 anos, neto do ex-presidente Lula, preso em Curitiba há quase um ano, sem provas de seus crimes. A Lula foi negado – e de última hora concedido – o direito de velar o irmão morto há um mês. Dessa vez, era bem possível que o judiciário concedesse ao “pai dos pobres brasileiros” dar seu último adeus ao neto, falecido precocemente, vítima de meningite meningocócica. Não porque o judiciário teria compaixão do velho avô (se ser avô é ser pai duas vezes, a saudade de arrumar o quarto de um neto que já morreu pode ser duas vezes maior também…), mas provavelmente por medo da opinião pública, que já havia reclamado quando a Lula foi negado o direito de velar o irmão morto.

Arthur tinha só sete anos mas já tinha passado por alguns maus momentos na escola e na vida: não era convidado para festinhas de colegas por ser neto de quem era; era desrespeitado e desprezado por coleguinhas, provavelmente influenciado pelos pais e outros parentes, por ser neto daquele que tirou milhões de brasileiros da fome, que ampliou o acesso ao ensino universitário público aos excluídos eternamente por esse sistema; que pagou a famigerada dívida externa brasileira e tantas outras coisas positivas realizadas, em prol dos mais necessitados, que meu amigo Evaristo Magalhães, psicanalista e escritor ativo nas redes sociais digitais contemporâneas, propalou em sua famosa Carta ao Lula, um texto que viralizou na internet nos últimos tempos.

Neste texto, ironicamente, Magalhães provoca os leitores, enumerando uma série de perguntas que demonstra inúmeros acertos do ex-presidente no sentido de diminuir pelo menos um pouco as imensas desigualdades sociais do Brasil. Repitamos pelo menos algumas dessas perguntas: “Quem mandou forçar as patricinhas a dividirem os corredores e lojas de shoppings com ‘periguetes’ mascando chicletes? Quem mandou retirar mais de trinta milhões de brasileiros da linha da miséria? Quem mandou governar um país em que pobres são como podres? Quem mandou firmar um pacto com as elites para assumirem suas responsabilidades por mais de quinhentos anos de miséria?”

Algumas pessoas escreveram pequenos grandes textos, maravilhosos, tratando da morte precoce do menino Arthur e da ida de seu avô ao velório, sem direito a falar para o público, a ser filmado, a dar entrevistas… chorei muitas vezes ao ler esses textos, sozinho, olhando pra tela quebrada do meu smartphone. Mas eu precisava de algo mais para elaborar meu luto por uma criança morta que eu não conheci pessoalmente. Uma criança que não era da minha família, não era da minha cidade, não era do meu círculo de amizades. Mas era neta de um dos homens mais nobres e que eu mais admiro na esfera pública: Lula.

Sei que muitos leitores discordam veementemente de mim. Tenho um “amigo” que mora fora do Brasil há quase trinta anos, pouco contato tem com este país, saiu daqui pobre e pobre continuou noutras plagas do planeta, e que diz levianamente odiar Lula e o PT. Pouco sabe ele sobre Lula e menos ainda sobre o PT. Mas o pouco que ele soube do Brasil em terras estrangeiras fez com que ele assimilasse esse ódio que se espalhou pela nação nos últimos anos… Mas eu aprendi muito cedo, antes que essa palavra entrasse na moda, a ter empatia: a me colocar no lugar do outro.

Não sou negro, mas imagino o preconceito que sofre o negro no país, porque também sou vítima de outra ordem de preconceito, por ter uma orientação de natureza sexual que muitos ainda chamam equivocadamente de “opção”; por estar acima do peso e por tantos outros detalhes da minha personalidade, que nada interferem no meu caráter. Tem muita gente bacana, estudada, que teve acesso a boas escolas e a mesa farta a vida inteira, que não aprendeu essa lição. Pensa que só a barriga do outro dói… (isso eu também aprendi cedo na vida, lembro até hoje de uma atitude leviana do adolescente que fui, sendo chamado a atenção por um colega: sua barriga também dói… que vergonha desse dia).

Muita gente aqui no Brasil ainda precisa aprender muita coisa, não por meio da leitura de mensagens fake que se espalham pelo WhatsApp, mas pela leitura de textos de pensadores que conseguiram entender melhor quem somos: Paulo Freire, Sérgio Buarque, Gilberto Freyre e mais recentemente Jessé de Sousa… Pobre povo brasileiro, de parca leitura e muito fone conectado ao ouvido a ouvir sabe-se lá o quê.

Eu precisava escrever esse texto para elaborar meu luto por esse menino que não conheci, mas que fez parte do meu mundo interior. Escrever é uma forma de sublimar. E de homenagear. Minha homenagem ao anjinho Arthur, que foi se encontrar com a vó Marisa Letícia lá no céu. Olha só, não creio em quase nada, mas não me custa homenagear usando essa imagem tão cara àqueles que creem e vivem ao meu redor.

 

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