Leia “O menino dos Gestos”, por Márcio Messias Belém

Belém é filho de pais surdos e estreia coluna sobre inclusão no Jornal Voz Ativa.

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Por Márcio Messias Belém Publicado em 07/04/2021, 13:59 - Atualizado em 07/04/2021, 14:00
Imagem ilustrativa. Crédito – Portal do Professor / MEC. Siga no Google News

O menino ouvia muito bem – mas se distraía conversando em gestos. Na sala de aula, fazia expressões engraçadas e cara de "cabeça-de-vento", enquanto ia soletrando o nome das coisas e pessoas com as mãos: estava descobrindo as palavras; se divertindo ao seu modo com a descoberta.

A professora se incomodava com o comportamento do menino, que era diferente dos demais.

- O gato comeu sua língua? - perguntava ao menino.

Ele dizia que não com a cabeça.

- Então por que não responde com a boca? - insistia.

O menino jogava a cabeça ao lado, desconversando.

A professora escrevia então, na agenda dela, a respeito dele:

"Aluno distraído"; "debochado"; "sem atenção"; "com problemas".

Ora, pois! Só porque o menino não gostava de falar com a boca, ele era tudo isso?

Da outra vez, o menino chegou com novidades. Alguns amiguinhos tinham recebido, durante o recreio, sinais engraçados para serem identificados; todos estavam felizes e se divertindo com a novidade. Menos Mariana, que não havia recebido sinal algum e desandou a chorar por isso.

- Porque está chorando, Mariana? - perguntou a professora.

Aí é que suas bochechas ficaram ainda mais vermelhas, e ela abriu um maior berreiro.

- É que ele tem um sinal pra todo mundo, menos pra mim. - Disse entre soluços.

- Sinal? Mas que história é essa? - Quis saber.

- Até a senhora tem um sinal, de "bicuda", porque faz um biquinho sempre. - Falou isso e voltou a chorar com força.

Bastou, para que a professora ficasse ainda mais bicuda. Quis com isso exigir satisfações:

- E então? - Ralhou com o menino dos gestos, colocando as mãos nas cadeiras. - Estou esperando uma explicação, mocinho.

Foi quando o menino também chorou, de um jeito que dava dó dele. As crianças quando não sabem se defender choram que é para as coisas não ficarem tão pesadas. Mas afinal, o que ele estava fazendo de errado? Já não bastava as coisas ruins a respeito dele que a professora anotava em sua agenda, só porque o menino não gostava de falar com a boca? Agora também isso? O menino até tentou se explicar, mas com tanto choro, aí é que a voz não saía mesmo.

- Não quero mais saber desses gestos em sala de aula! A partir de hoje você só vai se dirigir para pedir ou conversar falando com a boca! Está proibido de usar gestos! Entendeu?

O menino, assustado, disse que sim com a cabeça.

Ela interveio:

- Com a cabeça, não! Fala com a boca.

- Sim. - respondeu acuado.

A professora, ainda mais bicuda, prosseguiu ríspida:

- Vou escrever um bilhete em sua agenda e você só vai poder entrar na escola amanhã com os seus responsáveis.

No dia seguinte, os pais do menino estavam à porta da escola em companhia de seu filho. Queriam saber o que ele havia feito de tão errado para que fossem chamados pela professora.

A professora se prontificou a falar com os pais do menino, que estava meio que acuado entre eles. Ela disse em um bom tom de voz:

- Bom dia, vocês são os pais dele?

Eles nada responderam. Ficaram olhando para a professora, que nervosa coçava a nuca, fazendo um bico cada vez maior.

Vendo o desconforto da cena, o menino fez uma intervenção:

- Tia, posso falar em sinais? Eu sei que a senhora não quer que eu fale usando gestos. Se a senhora deixar e não brigar comigo, eu explico pra eles assim.

- Explicar? Como assim? - Ela estava confusa, ainda mais quando os pais se dirigiram à ela levando o dedo indicador do ouvido à boca.

- Eles estão dizendo que são surdos, e que estão preocupados porque chorei muito quando cheguei em casa. Eu disse que estava tudo bem e que a senhora estava chamando eles porque a Mariana estava sem sinal. Todos haviam recebido um, menos a Mariana.

- Si-sinal? - Gaguejou.

- Sim, sinal para identificar. Foi ideia minha. - Disse a mãe. - Eu já havia visto todos os amiguinhos de meu filho e dei um sinal de identificação para cada um deles, para facilitar a comunicação com meu filho em casa, já que ele tem muitas histórias da escola para contar. Mas eu não tinha visto a Mariana ainda.

A mãe então se dirige ao filho e pergunta a ele algo à parte. A professora fica curiosa:

- O que ela está dizendo agora? - Perguntou.

- Ela quer conhecer a Mariana para dar o sinal dela. Eu falei que a Mariana chorou muito porque estava sem sinal. Mas eu não posso dar um sinal para alguém. Só uma pessoa surda pode fazer isso. Mariana, você quer receber seu sinal de identificação?

Mariana veio correndo. A professora estava sem ação.

A mãe voltou a sinalizar e o menino a interpretá-la:

- Minha mãe está dizendo que você é uma menina bem bonita, e que fica mais bonita quando sorri. 

Dito isso, Mariana abriu um radiante sorriso que lhe tomou todo o rosto. O menino prosseguiu com a interpretação dos sinais:

- Com um sorriso lindo desses, o seu sinal não pode ser diferente: É "sorriso" porque você fica muito bonita quando sorri. Gostou?

Mariana, quase explodindo de felicidade, balançou a cabeça várias vezes dizendo que sim.

- Faz o seu sinal então, pra ver se aprendeu? - Perguntou a mãe do menino à Mariana.

Ela fez o sinal direitinho.

Então, a mãe perguntou ao restante da turma, e cada um fez seu sinal particular.

Não é que até a professora passou a gostar de seu sinal? Ela acenou toda serelepe aos pais do menino, apontando o dedo para si mesma, fazendo "biquinho" com a boca para dizer que era esse o seu sinal.

A partir daquele dia, o desconforto estava desfeito e o respeito pela língua de sinais passou a ser tão grande, que no ano seguinte dois alunos surdos foram matriculados na turma, que passou a ter aulas nas duas línguas.

A professora jogou fora a sua antiga agenda. Agora só escreve coisas boas sobre seus alunos.

Saiba mais sobre o colunista

Márcio Messias Belém é carioca e graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-graduado em Ensino de Língua Portuguesa aos Surdos como segunda língua pelo INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). Atualmente, faz mestrado em Educação Bilíngue (libras e português).

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