Leia ‘Nossos Cotidianos na Telona’, pelo professor Hércules Tolêdo Corrêa

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Por João Paulo Silva Publicado em 04/02/2019, 09:43 - Atualizado em 03/07/2019, 21:10

Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas. Atenção, puristas: esse texto pode conter expressões populares e ironias!

Quando vi pela primeira vez algumas ruas e outras paisagens urbanas que conhecia apenas por meio das telonas de cinema, senti uma emoção muito grande e fiquei pensando, no auge dos meus vinte e poucos anos, como seria a reação daqueles que por ali habitavam quando viam seus cotidianos projetados no cinema. Mas hoje percebo que a minha emoção (e comoção) é muito maior quando vejo projetada na telona a paisagem que tem me acompanhado desde que nasci, há exatos 54 anos e 4 meses.

O parágrafo acima é um dos efeitos do filme Temporada (Filmes de Plástico, 2018, direção de André Novais Oliveira) em minha mente e no meu coração. Não, esta não é uma resenha (deliberadamente) publicitária. Não quero (ou não quero declaradamente) angariar espectadores para o filme.

Sei que você, habituado aos filmes da TV aberta, dos mais populares Telecines, dos favoritos ao Oscar ou fã dos mais vistos do Netflix, não vai achar grande coisa o que verá nesse filme feito por um sujeito que pode ser seu vizinho, pode ter andado no mesmo ônibus que você na semana passada, ou pode ter estado com você naquele boteco do bairro. Mas foi isso aí que me fez ir ao cinema, assistir a cada cena cheio de interesse, vir para casa pensando em tudo que vi, buscar na internet algumas informações sobre o diretor, sua vida e sua (pequena, ainda) formação cinematográfica, sobre a protagonista e alguns dos coadjuvantes e agora sentar no computador para escrever esta crônica.

Temporada tem, sim, chamado a atenção de uma meia dúzia de críticos que frequentam os festivas nacionais de cinema. Também tem chamado atenção do público desses festivas, que também não é tão grande quanto a dos telespectadores brasileiros ou dos jovens que frequentam os cinemas dos shopping centers, uma vez que os cinemas de rua praticamente desapareceram das cidades já faz algumas décadas.

Temporada retrata a vida de pessoas simples, de gente como a gente, se é que você me entende. Juliana, mulher negra e gorda, deve ter seus vinte e tal anos… Quando nem mais se lembrava de um concurso que fizera, para trabalhar como agente de saúde pública na cidade de Contagem, vizinha da capital mineira, Juliana é chamada para assumir o cargo. Sai, então, da sua cidade natal, Itaúna, e se muda para um barracão num bairro simples. Não se dá ao trabalho nem de montar sua cama. Estende o lençol sobre o colchão apoiado no chão mesmo, dorme com a própria roupa do corpo e se cobre com uma coberta desgastada pelo uso.

Sua seção de trabalho é improvisada na sala de uma escola pública, tão descuidada quanto quase tudo que cerca o universo da protagonista, uma espécie de Macabeia, a anti-heroína criada pela escritora Clarice Lispector em A hora da estrela, e que ganhou as telonas na década de 1980, pelas lentes de Suzana Amaral. Tal como Marcélia Cartaxo (a atriz que encarnou Macabeia nas telonas), Grace Passô também não está nos padrões de beleza requeridos pelo cinemão ou pela TV.  Cartaxo ganhou, à época de lançamento do filme, o Urso de Prata de Melhor Atriz no festival de Berlim (1985). Passô também tem angariado prêmios em festivais brasileiros (Brasília, 2018).

Mas continuemos falando de Temporada e do que mais se vê ali. O cotidiano de Juliana lhe permite adentrar a casa das pessoas, ao interior das casas simples, com móveis quebrados e eletrodomésticos encardidos pelo tempo, das ruas tortas e não planejadas dos bairros periféricos.

A recepção nem sempre é boa, como a da “profissional da noite” (não pensem que a dona é prostituta, pode ser uma técnica de enfermagem, uma camareira de motel ou qualquer outro tipo de profissional que se vê obrigado a trabalhar madrugada adentro por falta de opção), mas tem também aquelas pessoas que fazem questão de oferecer um café quentinho com uma fatia de bolo de milho com queijo, bem ao gosto dos nossos paladares mineiros.

A equipe de trabalho à qual pertence Juliana é constituída de personagens bem parecidos com ela: brasileiros típicos com faixa etária variando entre vinte e quarenta e poucos anos, meio brancos meio pretos, pretos, aquele tipo de pobre que teimamos em chamar de classe média baixa. Esperam ansiosamente o dia do pagamento do salário, vivem às voltas com dívidas cotidianas (aluguel, água e luz), comemoram seus aniversários com “churrasquinho de gato” e cerveja em lata comprada na promoção do supermercado do bairro.

Talvez o que mais diferencie Juliana das demais pessoas que conhecemos é que a moça é extremamente introspectiva. Para falar do filho que perdeu, ainda na barriga, para a prima, ela precisa se esforçar muito. Quando os colegas perguntam pela sua vida pessoal, ela desconversa. Sem dar explicações, Carlos, o marido que Juliana espera em Belo Horizonte, desaparece do trabalho em Itaúna sem dar nenhuma satisfação nem para o patrão nem para a mulher.

Tempos depois, envia-lhe um áudio, pelo celular, mas parece que Juliana já não quer mais saber o que ele tem a falar, se é que tem… Numa certa altura do filme, ela conta à colega que ficou algum tempo sem falar, da adolescência aos vinte e três anos, se não me engano. A agente conta que, de repente, parou de falar. Os pais se preocuparam e até conseguiram tratamento psicológico gratuito para ela, mas de nada adiantou. Aos poucos, todos os que a circundavam foram se acostumando à mudez da jovem. Ela até passou a fazer “provas orais escritas” na escola, com a complacência dos seus professores.

Ouso dizer que se trata de um filme sobre dificuldade de comunicação ou mesmo sobre a incomunicabilidade. Mas não é “só” isso. É também um filme sobre mim, sobre você, sobre o brasileiro médio, que também espera ansiosamente seu salário no final do mês, que luta para pagar as contas mensais, que está insatisfeito com o salário mas que não se move para mudar (ou não tem como se mover).

É um filme sobre a ocupação urbana desordenada das grandes cidades, com gente que usa a laje da casa para fazer churrasco, para se bronzear ou para colocar aquelas “plantinhas de vó” plantadas em latas de tinta que sobraram da pintura que você mesmo fez na sua casa, auxiliado pela vizinhança.

Enfim, acho que gostei muito do que vi, porque me vi, vi os meus vizinhos, vi meus amigos, as ruas pelas quais trafego, os bares que frequento, a vida que a gente leva… tudo isso retratado na telona do cinema.

Filme: Temporada (2018, Filme de Plástico), direção de André Novais Oliveira, com Grace Passô, Russo ABR e outros.

Prêmios: Festival de Brasília 2018 (51ª edição do festival), Temporada foi considerado o grande vencedor: melhor filme, melhor atriz (Grace Passô), melhor ator coadjuvante (Russão), melhor fotografia (Wilssa Esser) e melhor direção de arte (Diogo Hayashi).

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