Leia “Minha personagem, minha paixão”, na coluna “Prosa na Janela”, com Roberto dos Santos

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Por João Paulo Silva Publicado em 10/10/2018, 13:21 - Atualizado em 02/07/2019, 01:05

Roberto Santos, 47 anos, nascido em Dores de Guanhães, chegou ao Distrito Ouro-pretano de Antonio Pereira em 1979. É porteiro na Universidade Federal de Ouro Preto – UFOP e tem uma sensibilidade peculiar na apresentação de seus textos. É casado com Márcia, que é a aguerrida diretora da Escola Municipal Alfredo Baeta e têm o filho Antônio, de 13 anos.

Quando desembarcou no Rio de Janeiro, vinda do Golfo da Guiné (hoje Gana), Jana passou por mais uma humilhação. Foi arrematada num leilão por um minerador de Vila Rica, que a comprou juntamente com outros negros que chegara no mesmo navio. Era para tê-los como mão de obra escrava nas minas de Minas.

Jana assumiria os trabalhos de casa, já que se apresentava forte e de porte físico destacável.

O inicio de tudo foi no Golfo da Guiné onde foi capturada juntamente com outros de seu povo e vendidos a traficante de escravos. Tirada do convívio de sua gente e tomada pela saudade, se viu numa viagem dolorosa.

O som das águas no casco do navio era ensurdecedor. Trilha sonora da saudade que sentia. Sons que avivava nela o temor de nunca mais rever seu povo.

Todo dia ela chorava. As lágrimas quentes que deslizavam pelo seu rosto era saudade, dor e um pedido silencioso de socorro.  Ainda tão jovem e já sofrendo tanto.

Aquele pano que fazia às vezes de lenço, escondia seus cabelos e parte do seu rosto. As vestes desproporcionais escondiam os contornos de seu corpo.

A única coisa perceptível sem muito esforço era a estatura avantajada que se sobrepunha as demais mulheres da embarcação.

Os olhares masculinos dos tripulantes do navio viam nela apenas grande potencial de trabalho, o tamanho de Jana significava para eles força e resistência.

O enredo acima descreve a obra de um escritor que realizava o sonho de escrever o seu primeiro livro. Já estava tudo acertado, era só finalizar a estória e dar sequência no processo de publicação da obra.

Durval Vaz já havia escrito mais de quinhentas páginas, mas o encantamento que desenvolvera pela estória que escrevia, exerceu grande influencia na hora de dar rumos finais a seus escritos. Ele parecia querer se prolongar e ir um pouco mais adiante.

A estória ia se desenvolvendo dentro do navio. Jana tinha como único alento uma estrela de brilho intenso que via no céu através da escotilha da embarcação.

Todas as noites ela estava lá, parecia velar por ela. Era só a escuridão da noite se instalar e a estrela brilhava forte e alternava a intensidade do brilho, dando a entender que se solidarizava com os questionamentos de Jana. A viagem de longa duração possibilitou muitos encontros e essa constância teceu em seus corações laços de verdadeira amizade.

Jana passou a suportar melhor as angústias e alimentar a esperança do reencontro.

O navio atracou no Rio de Janeiro no Cais do Valango e os negros da África juntamente com a moça do Golfo da Guiné desembarcaram. Estavam a milhares de quilômetros de casa e em poucas horas passariam por mais uma humilhação em suas vidas.

Horas depois Jana era só pranto. Os lances que definiria seu destino e dos outros negros, soavam como bomba aos seus ouvidos. Negociados como mercadoria e tendo a humanidade ignorada, sem voz e nem vez, seguiram os passos de seus “senhores”.

Jana seguiu para Vila Rica, com ela foram outros negros para trabalhar nas minas de ouro.

Quem os comprou tinha muito dinheiro e certamente frentes de trabalho na Vila do ouro.

Depois de alguns anos, numa noite fria de inverno, Jana que vivia sempre triste notou um brilho intenso no céu, percebera isso pela fresta da janela, no lugar em que dormia. Levantou-se e abrindo um pouco a janela viu ao longe sobre a montanha uma estrela cintilante. Ela reconheceu de imediato à estrela amiga e abriu um sorriso há anos ausente em seus lábios. O brilho alternava tonalidades e parecia dizer a Jana da alegria de reencontra-la. Toda madrugada a partir daquele dia, ela abria a janela e falava com a amiga e depois dormia cheia de esperança. Isso a fortalecia na espera.

Seguindo com a vida, Jana foi lavar roupa no riacho. Ela sempre fazia isso. O barulho das águas nas pedras que margeava o rio era relaxante, o oposto da lembrança das ondas do mar no casco do navio.

Ela sempre levava consigo um vestido mais leve. Um daqueles que usava para dormir.

Chegando ao rio colocava o vestido que levara e ia lavar as roupas dos patrões. Como ninguém ia lá, o perigo de ser surpreendida era reduzido e com os arredores no seu campo de visão, qualquer presença seria detectada a tempo de se recompor. Nada podia dar errado se não seria castigada. Mesmo assim arriscou-se e resolveu banhar-se naquelas águas. O calor era intenso.

Apenas os pássaros, as flores e as borboletas testemunharam os poucos momentos de relaxamento que Jana tivera em anos.

Jana soltou os cabelos e eles tocaram seus ombros, as águas os umedeceram e eles se avolumaram. Os pingos que brotavam do meio deles escorriam pela sua pele negra e lisa, a transparência das águas dava a ela brilho e beleza.  Depois os pingos que percorrera todo o seu corpo projetaram-se na corredeira, e seguiram levando um pouco dela.

Durval Vaz, já ultrapassava as mil páginas e não conseguia finalizar seu livro.

Além da bravura de Jana, o escritor começava a enaltecer também a beleza dela. Todas as noites ele escrevia e sofria. Queria dar a sua personagem principal, um final que suplantasse todo o sofrimento e dor que a acompanhava. Mas não conseguia dar passos nessa direção.

Ele já havia retratado a beleza ofuscada pelas vestes descomunais impostas as mulheres escravizadas daquele tempo. Só não conseguia amarrar a estória e dar a ela um final.

A impressão marcante que ficou da moça ao descrevê-la no riacho tomando banho, o fez sonhar com a personagem na noite seguinte. Isso se deu quando adormecera já extenuado pelo excesso de noites mal dormidas. Com a cabeça apoiada em sua escrivaninha e já dominado pelo sono, mergulhou profundamente em sua imaginação e lá encontrou com Jana.

Tirou-a da escravidão e trouxe para o seu tempo. Deu a ela liberdade, roupas leves, sorriso farto e alegria no coração.

A negra linda de seu sonho não era escravizada.

Após acordar do sonho, Durval Vaz não se conteve e chorou.  Permaneceu boa parte da madrugada a pensar. Decidiu então dar a Jana a felicidade que viu em seu  rosto quando sonhava.

Iria dar a moça um amor, e a esse amor a missão de cuidar dela e ajuda-la na tentativa de reencontrar seu povo. Mas a sua imaginação não conseguia colocar isso no papel.

Sonhou outras vezes com ela e num certo momento percebeu que estava apaixonado pela sua personagem. Esse era o motivo pelo qual não conseguia dar a ela um alguém para amar. Estava sentindo incomodado em vê-la nos braços de outro.

Na noite que escreveu o último capitulo, chorou como nunca havia chorado antes. Chegou definitivamente à conclusão de que ela precisava ser feliz e mesmo não podendo tê-la para si, a felicidade dela era o que importava.

Ele então colocou na vida dela Antenor, que a comprou de seu dono, deu a ela a liberdade e tudo o que precisava para viver. Ela ficou a trabalhar com Antenor e a ela foi concedido direito e deveres, transformando sua vida. Agora ela exercia sua cidadania com plenitude. Ele já havia se apaixonado por ela, mas não revelou prontamente, pois acreditava que o amor é livre, e esperava o amor dela. Encheu-a de carinho e atenção conquistando dia a dia.

Jana sentindo valorizada como mulher, declarou seu amor a Antenor. O amor dela foi de encontro ao dele e pouco tempo depois resolveram se casar.

O escritor sofria enquanto conduzia a sua estória para o caminho do fim e seguiu escrevendo.

Antenor conhecendo toda a estória foi com ela a sua terra natal para tentar rever seu povo. Muitos de sua gente haviam sidos separados pelas mãos maldosas do homem.

Jana apresentou seu marido a seus pais e chorou de felicidade. Sentindo falta de alguns que não estavam lá, Jana prometeu que não desistiria de nenhum deles.  E abraçando fortemente Antenor, sussurrou no seu ouvido a alegria de tê-lo encontrado e manifestou a esperança de que os ausentes encontrassem alguém que os conduzissem de volta, assim como ela o encontrou.

E Durval Vaz escritor dessa estória, escreveu o último capítulo de seu livro com lágrimas e imensa dor no coração.

Não encontrou uma forma de ficar com seu amor, mas amando-a encontrou um jeito de fazê-la feliz.

E aquela moça que tinha apenas uma estrela como amiga, agora já tinha um amor.

O escritor ficou feliz, mas por muitos dias se viu envolto em profunda tristeza, sentiu-se assim, não pela felicidade dela, mas por saber que não mais a encontraria nas madrugadas de sua vida.

Jana continuou sua procura e seu marido a apoiava em tudo.

A felicidade já se instalara em seu coração e para o escritor que apaixonou pela sua personagem isso era o bastante.

E entre lágrimas e saudade Durval Vaz escreveu a última palavra. Fim.

 

 

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