Leia “Elza Soares, a mulher-gata”, por Hércules Tolêdo Corrêa

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Por João Paulo Silva Publicado em 28/11/2018, 10:34 - Atualizado em 02/07/2019, 01:54

Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas.

Musicais sobre artistas brasileiros estão na moda. Gonzaguinha, Tim Maia, Elis Regina, Cazuza, Cássia Eller, esses foram alguns dos artistas mortos homenageados em teatros musicais nas últimas décadas. Cauby Peixoto ganhou uma homenagem ainda em vida. Quem ganha a homenagem agora é a cantora Elza Soares, ícone da música popular brasileira. Tive a oportunidade de ver todos os musicais citados. Dando vida aos artistas no palco, sempre um outro artista, misto de cantor(a) e ator(atriz). No último domingo, fui ver o musical Elza. Para representá-la, não apenas uma “cantriz” (mistura de cantora com atriz), mas sete “cantrizes” negras, de diferentes tonalidades de pele, que alternam, no palco, diferentes momentos da carreira da diva brasileira. As atrizes também revezavam-se nos papeis de familiares e amigos de Elza: o pai, a mãe, o primeiro marido, o compositor e apresentador de programa de rádio Ary Barroso.

Espetáculo muito bem montado: figurino bem produzido, iluminação de qualidade; seis musicistas ao fundo, acompanhando as “cantrizes” no palco. As cantoras estão muito afinadas. Nem todas, nem a todo momento, “incorporam” Elza Soares, imitando-a. Muitas vezes eram elas mesmas recriando as canções imortalizadas pela voz rascante e rouca da diva negra.

Se hoje Elza Soares goza de prestígio entre o público e seu talento é legitimado pela crítica brasileira e internacional (em 2000 a cantora foi premiada pela BBC de Londres como a “cantora brasileira do milênio” e teve seu nome incluído na lista das 100 maiores vozes da música brasileira pela revista Rolling Stones), sua vida nem sempre foi glamour. Muito antes pelo contrário. Tenho muito vivas ainda na memória as inúmeras vezes em que ouvi a cantora ser criticada, nos anos 1970, por “destruir um lar”. Considerada uma mulher vadia e irresponsável à época, porque se apaixonou e envolveu-se com o jogador de futebol Mané Garrincha, que largou mulher e filhos na interiorana Pau Grande para ir viver um tórrido relacionamento que durou vinte anos com Elza Soares na capital do Rio de Janeiro, Elza foi achincalhada pela opinião pública.

Muito se falou e tem se falado de Elza. Já assisti a um filme sobre a vida de Mané Garrincha (Garrincha – Estrela solitária, dirigido por Milton Alencar em 2005), em que a atriz Taís Araújo fez o papel de Elza Soares, e também vi um documentário sobre Elza, My name is now (dirigido por Elizabeth Martins Campos, 2014). Recentemente, o jornalista global Zeca Camargo lançou uma biografia da cantora pela editora Leya (Elza, 2018). Juntando tudo que já vi e li sobre a artista, de quem sou ardoroso fã há mais de trinta anos, beirando os 40 já, não foi nada complicado entender o espetáculo, que opta por não contar cronologicamente a vida da musa, mas por intercalar momentos significativos de sua trágica vida com as canções que marcaram época e fizeram sucesso na sua voz: Lata d’Água, Se acaso você chegasse, Volta por cima, A carne, Espumas ao vento, Maria da Vila Matilde, até o último de seus sucessos, Deus é mulher, dentre outras.

Nascida na favela carioca de Moça Bonita (nome atribuído ao local por causa de um assassinato de uma jovem naquele lugar, hoje a comunidade é chamada de Vila Vintém), Elza Gomes da Conceição, criada no periférico bairro Água Santa, foi obrigada por seu pai a casar-se com um amigo dele ainda na pré-adolescência. Com esse marido teve vários filhos e perdeu dois deles ainda crianças, em virtude de doenças e com a falta de financeiras para tratá-las. Anos mais tarde, passaria por situação semelhante, ao perder o filho Garrinchinha com nove anos de idade, fruto do seu relacionamento com o “anjo de pernas tortas”, como o jornalista Ruy Castro batizou o jogador Mané Garrincha.

É bem conhecida a história de sua primeira apresentação no programa de calouros de Ary Barroso, na rádio Tupi. Assustado com sua aparência e com ar de deboche, o apresentador perguntou à jovem caloura: – De que planeta você veio, minha filha? Ao que ela prontamente respondeu: – Do mesmo planeta que o senhor, do planeta fome! Estava marcado ali o seu futuro como importante porta-voz dos excluídos: negra, pobre, mulher.

Elza Soares teve uma vida cheia de altos e baixos, como mostra o espetáculo: do sucesso ao quase esquecimento, quando foi “resgatada” por Caetano Veloso, que a convidou para participar da música Língua, lançada nos anos 1980, no long-play Velô. Em 1999, quando se apresentava na antiga casa de shows Metropolitan, no Rio de Janeiro, Elza Soares levou um tombo e machucou a coluna, o que acarretou-lhe sérios problemas. Hoje, a artista quase não anda, mas continua, com seus mais de oitenta anos (a idade de Elza sempre foi uma incógnita. Ela não gosta de revelar quantos anos tem, afirmando até que não sabe bem a sua verdadeira idade, uma vez que foi emancipada para casar-se), apresentando-se sentada e cantando melhor do que nunca, com sua voz rouca, que dá ao samba ares de jazz. Louis Armstrong, quando a conheceu, chamou-a de “my daughter”, tal a semelhança na forma de cantar entre os dois.

Elza Soares sempre teve um visual marcante. Na contramão da moda, quando na virada do século surgiram muitos produtos para os cabelos crespos e mulheres e homens negros aderiram à “moda da chapinha”, tornando seus cabelos lisos como o das pessoas brancas, Elza manteve sempre a sua enorme gaforinha, sempre ousando e variando as cores. Provavelmente resultado de cirurgias plásticas, há muito a cantora também é conhecida pelos seus olhos bastante puxados, acentuados pela maquiagem.

Assistir ao espetáculo Elza naquela noite foi um grande presente que me dei. Fechei o domingo com chave de ouro. Após o espetáculo, ainda ouvi belos depoimentos de três das “cantrizes” que a representaram: três negras de diferentes tonalidades de pele, bem jovens, muito bem articuladas, muito engajadas na luta anti-racismo neste momento sombrio em que futuras autoridades brasileiras já fizeram comentários bastante depreciativos sobre esse povo que constitui enorme parcela da população brasileira, esses descendentes de africanos que nasceram livres em seu continente e foram aqui escravizados e tratados como mercadoria e como animais, e que ainda o são, quando se fala em seu peso usando a unidade de medida popular “arroba”, apropriada para o gado. Sim, temos uma grande dívida com essa raça e se hoje existem cotas raciais nas universidades e nos empregos públicos, é porque precisamos ainda saldar essa dívida. Estatísticas mostram que negros morrem muito mais que brancos, vítimas de violência; que mulheres negras têm muito menos chance de conseguir os melhores empregos e ascender na carreira; e que mulheres negras até têm mais dificuldade em se casar, porque ainda são vistas, por muitos homens brancos, como mais apropriadas para o sexo do que para a constituição de uma família. Aprendi ainda, com o bate-papo, sobre o colorismo (o privilégio que os negros de pele mais clara têm sobre aqueles que têm a pele mais escura).

Depois desse espetáculo, fica mesmo a conclusão: é preciso muitas mulheres para representar Elza Soares, porque Elza é múltipla. Elza é como um gato, Elza é uma mulher-gata (não confundir com a personagem vilã Mulher-Gato), tem sete vidas, ou mais… Morre e renasce das cinzas, como uma fênix negra brasileira.

Elza. Direção: Duda Maia. Texto: Vinícius Calderoni. Direção musical: Pedro Luís, Larissa Luz e Antônia Adnet. Arranjos: Letieres Leite. Direção de Produção: André Alves. Com Larissa Luz, Janamô, Júlia Tizumba, Késia Estácio, Khrystal, Laís Lacorte e Verônica Bonfim.

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