Inclusão | Leia “Dona Quiquinha”, por Márcio Messias Belém

Filho de pais surdos, o filósofo carioca Márcio Messias Belém se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade, a Inclusão, principalmente voltada às pessoas com deficiência.

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Por Márcio Messias Belém Publicado em 31/05/2021, 16:38 - Atualizado em 31/05/2021, 17:25
Foto – Márcio Messias Belém. Crédito – Arquivo pessoal. Siga no Google News

As mãos, apesar de cansadas e castigadas pelo desgaste do tempo, eram concentradas para fazer o contorno de cada letra que formam as palavras, que por sua vez se conectam uma as outras, dando existência assim às frases. Aliás, a caligrafia de Dona Francisca – mais conhecida como Dona Quiquinha – era muito bonita, de fazer alegrar os olhos de quem a lesse. E como também era riquíssimo tudo que deixava emergir através de sua escrita – o devir-negro de Mbembe, colocado no papel! Sim, dava gosto cada verbo, cada expressão, cada impressão, cada narrativa... Dona Quiquinha era uma enciclopédia viva!

Desde que se deu por gente, sempre quis aprender a ler e escrever. Ela via as palavras expostas em letreiros, cartazes de mercado, nos livros e jornais; se admirava como as pessoas davam sentido a elas quando as liam, mas nunca teve oportunidade de aprendê-las.

Esse acesso dificultado para a aquisição da escrita e leitura, se explica no fato dela ter nascido em uma época, não tão diferente da nossa, em que nem todas as pessoas pretas e pobres tinham acesso à educação; essa informação procede nas próprias narrativas da redatora; pois ela mesma teria dito em uma de suas redações, “... a gente trabalhava muito nessa época pra ter o que comer; não dava tempo de estudar.”.

Dona Quiquinha trabalhou duro mesmo, desde bem menina, a ponto de as mãos ficarem bastante calejadas. Levantava ainda madrugada, junto com seus sete irmãos, e se dirigia para cumprir tarefas pesadas na roça, as vezes plantando e colhendo café, as vezes cortando cana de açúcar para os moinhos;

Depois que saiu do campo, migrou para a cidade grande, continuando sua sina de trabalhos análogos à escravidão, nas casas das famílias das pessoas brancas e elitistas, e que estavam sempre vistosas nas fotografias dos jornais e colunas sociais, por serem consideradas importantes.

Prestou serviços praticamente à três gerações de uma mesma família, já que trabalhou durante muito tempo em uma mesma casa. Isso a prejudicou muito, porque deixou de viver a própria vida em função da vida dos outros, assim como seus pais e avós anteriormente, e que faziam parte dos escravizados.

Talvez isso explique o fato dela nunca ter constituído família – estava totalmente consumida pelo serviço à terceiros, que esqueceu-se de viver a própria vida, pois teve toda sua disposição, física e mental, roubada por aqueles que a exploraram desde sempre.

Porém, depois de aposentada por não poder mais ser consumida, viu que ainda tinha fôlego para mais um salto: por que não aprender a ler e escrever? Por que não, já que sempre achou tão bonito todo aquele arranjo de palavras e frases?

Dona Quiquinha era tinhosa. Não pensou duas vezes ao se matricular em uma turma do EJA, oferecido a noite em uma escola municipal. Lá foi ela, quase oitenta anos de idade, cabelos branquinhos como a lã, se apropriar das palavras e frases – queria escrever suas histórias e vivências! Conta-las às pessoas.

“No início, eu fazia muita confusão pra juntar as letras... pra escrever, a professora que me alfabetizou, segurou minhas mãos tantas vezes pra eu melhorar minha escrita-fina, que achei que fosse a mão de Nossa Senhora.” – teria dito em uma entrevista a um jornal de bairro, interessado em sua história.

Quando começou a escrever suas redações biográficas, Dona Quiquinha optou por contar os casos que ouvia ainda mocinha, que estavam vivas na imaginação, mas que ainda permaneciam na abstração da narrativa oral. Sem perceber, memórias estavam tomando corpo e forma, enquanto os que a liam, eram desarraigados do racismo estrutural vigente. 

 Certa vez, lembrando-se de um fato importante desse período, a redatora biográfica escreveu o seguinte:

“... minha mãe contava que minha vó, mãe dela, teve o olho vazado por causa do ciúme doentio da sinhá; e o sinhô nem era isso tudo, que merecesse todo aquele ciúme..., mas minha vó era muito bonita, e isso bastava para que fosse punida.”

Peço licença para quebrar a quarta parede e fazer uma reflexão com você:

A falta de aquisição da leitura e escrita, não é só um problema isolado em que apenas umas poucas pessoas deixam de ler e escrever. Mas é uma desordem social e manobra cruel elitista, porque além de prejudicar os desfavorecidos, impedindo-os do acesso às informações mais elementares, e como consequência à possibilidades de ascensão social; também (de um modo bem perverso) enclausura nos porões as memórias históricas das pessoas, já que elas não poderão escrever suas próprias narrativas à partir de suas experiências e vivências – por essa razão, devemos suspeitar se tudo isso é ou não intencional.

De volta ao nosso assunto, Dona Quiquinha, quando chegou ao ensino médio, já fazendo grande esforço, passou a dar ênfase em suas narrativas ao tempo em que era pessoa-invisível na casa das madames. Escrevia com uma escrita desafiadora; um dos trechos apontava:

“Vários assuntos muito pessoais eram falados diante de nós, que trabalhávamos na casa; era como se simplesmente não existíssemos...”

Em outro momento escreveu:

“A gente temia os olhares da patroa, geralmente constrangedores. O olhar dizia muito. Eles eram sempre desconfiados. Se em uma festa, sumisse uma bolsa ou objeto, a culpa ou desconfiança caía sempre nos empregados. E se por acaso o objeto ou bolsa sumidos, em outro momento fossem encontrados, nem ficávamos sabendo disso ... não havia sequer um pedido de desculpas que nos aliviasse.”

Sobre o pagamento de salários, pontuou:

“Recebia meu salário em dia. Mas era pago com pena. O salário pago com pena, não rende. E o meu, que já não era muito, sofria esse dissabor...”

Dona Quiquinha chegou ao final do Ensino Médio já cansada pela longa estrada. Mas não perdia o riso no rosto, apesar de já sentir o corpo ir parando.

É uma pena, que nós pobres, quando largamos na corrida competitiva da vida, tenhamos que o fazer tão tardiamente. Até conseguirmos diminuir ou atenuar o prejuízo, perdemos tanto tempo, que o desgaste do tempo, que nos consome no fim, não se apieda.

Os rins da Dona Quiquinha, por exemplo, não davam mais conta da idade avançada; ela precisava com frequência de sessões de hemodiálise. A voz que saía de sua boca estava cada vez mais fraquinha, por ficar bastante debilitada a cada sessão.

Lembro-me de uma vez, em que ela estava quase afásica, desgastado pelo tratamento e agravamento da insuficiência renal. Tive que me curvar para ouvi-la.

– Tadinho!” – ela sussurrava.

– Porquê “tadinho”, Dona Quiquinha? – quis entender.

Ela não respondeu. Preferiu me comunicar outro assunto. Mais uma vez tive que abaixar para tentar entendê-la. Tomei um grande susto quando a entendi:

– O Enem?!?! A senhora na lista dos aprovados em Direito?!?! Na Federal ainda?!?! Que maravilha!!!

Ela riu com suavidade, enquanto balançava a cabeça positivamente.

Respirei fundo não conseguindo parar minhas lágrimas.

– Mas por que a senhora está me chamando de tadinho?

 – Porque você está se abaixando para me escutar – me respondeu.

– Ah! Dona Quiquinha. Se encurvar para ouvi-la é sempre um prazer.

Naquela noite, a alma de Quiquinha libertou-se do corpo. Partiu em seu voo místico, deixando para trás sua linda história.

Meus olhos marejam cada vez que leio seu nome entre os classificados do Enem.

Se as oportunidades fossem iguais, aonde chegaria Dona Quiquinha?

Onde chegariam os pretos, indígenas e caboclos silenciados pelo sistema?

Sobre o colunista

* Márcio Messias Belém é carioca e graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-graduado em Ensino de Língua Portuguesa aos Surdos como segunda língua pelo INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). Atualmente, faz mestrado em Educação Bilíngue (libras e português).

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