– Celestino nunca voou de avião ou andou de barco. Não tinha sequer ideia de como era um ou outro, por fora ou por dentro. Nem mesmo as silhuetas era capaz de imaginar, por ter vivido toda a vida, profundamente e desde que nasceu, em um confinamento imposto: – não podia ver o mundo e nem ouvir a vida – diziam a vozes dos “outros”; as mesmas que era incapaz de escutar ou fazer leitura labial, por ser surdo-cego congênito.
Sabia que respirava; sabia também que sentia fome e sede, frio e calor; e alguns outros fatos ou percalços que não podia interpretar, por lhe faltarem os signos para a linguagem: como o avião ou barco, e a esperança que temos em alçar o voo ou levantar a vela, a partir dessas representações.
Toda a vida, desde o nascimento, sem aviões e sem barcos, sem canções e sem pássaros, sem o rosto e a música dos pais – silenciado em quarto escuro e espacialmente muito reduzido, tanto no imaginário quanto na memória.
Um dia, porém, a mão-língua forçou a porta. Forçou de tal forma, insistindo, contra o ferrolho. Desafiando certas engrenagens. Era preciso instar assim. A mão-língua de alguém sobre as suas mãos-sentidos ausentes; parecia um convite insistente para a dança.
O pequeno milagre de ser humano no eu-tu; eu-isso!
Então, – “Fiat Lux!” – : e houve céus e terra.
Sobre o autor
Após um breve hiato em sua produção para o JVA, Márcio Messias Belém está de volta falando de dignidade, respeito e inclusão para as pessoas com deficiência. Filho de pais surdos, o filósofo carioca se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade.
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