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Leia a crônica ‘Memória da memória da memória’, pelo professor Hércules Tolêdo Corrêa

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Por João Paulo Silva Publicado em 11/01/2019, 10:24 - Atualizado em 03/07/2019, 20:49

Hércules Tolêdo Corrêa é professor da UFOP e apaixonado por literatura, cinema, música e mais um monte de coisas. Atenção, puristas: esse texto pode conter expressões populares e ironias!

Agora, aos 40 anos, ele é um professor universitário bem-sucedido. Tem muitos trabalhos publicados e é reconhecido pelos seus pares em universidades de vários estados do seu país e mesmo do mundo. Não é rico. Está muito longe disso, porque não se enriquece sendo professor no país dele. Em nenhum dos níveis de ensino. Muito menos sendo professor de universidade pública. Mas pode-se dizer que ele tem uma vida bastante digna. Mora numa casa confortável, ampla, em condomínio situado em local nobre da cidade. É muito elogiado pelos alunos e a família o tem em alta conta. É casado, pai de duas crianças lindas: um menino e uma menina. Tudo (quase) perfeito. Mas nem sempre foi assim. Ele contou para o colega…

Antes, aos 20 anos, ele entrou para a faculdade de filosofia da melhor universidade do seu estado. Estudava pela manhã. Nas aulas, ouvia preleções quase infindáveis de professores que foram aprender noutras plagas. Professores que trouxeram da Europa, “berço da civilização”, a “mais fina flor do conhecimento”. Eles aprenderam com os alemães, que por sua vez aprenderam com os gregos. Mas havia outros, de outras terras, que também legaram àqueles doutores esse conhecimento profundo sobre a natureza humana, sobre o mundo, sobre as palavras e as coisas. Os doutos ensinavam aos jovens como ele, de 20 anos, quem veio primeiro:  o pensamento ou a linguagem, o ovo ou a galinha. Quem sou? De onde vim?   Para onde vou?  Um dia, ao sair da faculdade, com a cabeça abarrotada de teorias e pensamentos abstratos, acompanhado daquela colega branquinha, filha de doutor médico e doutora professora, que dividia com ele a mesma sala e aprendia também tudo que os outros doutos ensinavam, ele mirou o gramado em frente à reitoria, enquanto caminhava para o barulhento restaurante universitário. Aí ele se lembrou.

Bem antes, aos 8 anos, fora convidado pelos meninos do seu bairro, na periferia da capital, a ir bater uma pelada num campinho bem legal que havia a alguns quilômetros de sua casa. Juntaram meia dúzia de moleques pardos, os mais comuns dos comuns da sua comunidade, montaram em suas bicicletas reconsertadas dezenas de vezes, alguns na garupa e outros no guidão, e foram em busca do campo dos sonhos. O Geda disse que fica para cá. Não, é para lá! Corrigiu o Rato. Então, vamos! Decidiu o líder do grupo, o Barriga. Rumaram pra civilização. Pegaram o asfalto, a avenida grande, atravessaram dois ou três bairros de classe média média e chegaram a um portal. Atravessar o portal foi fácil. Lá estava escrito: Universidade Federal de Minas Gerais. Aquelas palavras nada diziam pro Geda, pro Rato, pro Barriga e pros outros: Strong, Tiulina, Gordo… Menos ainda para os outros meninos pardos mulatos quase negros quase brancos da comunidade. Algumas centenas de metros e estavam já no gramado, bola no pé (o Tiulina havia levado a bola na mão, na garupa do Barriga) e dribla daqui, dribla dali, marcaram o primeiro gol. As traves eram duas pedras que eles arrumaram por ali mesmo. Entre o campo e o prédio de vidro, em forma de barco, projetado pelo mais importante dos arquitetos do país, num lago de águas esverdeadas, nadavam e nada pensavam coloridas carpas, peixes de aquário em tamanho GG. Mas a diversão durou pouco. Logo vieram os homens de marrom e disseram: Oh, moleques, aqui não é lugar de jogar bola, não! Não pode pisar na grama. Não pode jogar bola aqui, não! Aqui não é para vocês! Isto aqui não lhes pertence. E eles foram expulsos do gramado e daquele lugar. Tiveram de pegar suas bicicletas velhas, que estavam deitadas ao lado do laguinho, e rumar correndo, atravessando o portal com as quatro palavras que para eles nada significavam.

Sim. Agora ele se recordava. Aquele moço de vinte anos (já não era mais conhecido como Stalone Strong), há doze anos viera jogar bola ali naquele gramado e fora expulso. Mas na segunda vez que ele ali entrou, ele pode ficar. Não para jogar bola. Mas para sentar na cadeira, com registro de matrícula e nome de “universitário”. Era estudante de Filosofia.

Sim. Agora ele contava pro colega de departamento e vizinho de condomínio, que ele entrou três vezes na mesma universidade. Não foi fácil. Definitivamente, não foi. Nesta crônica não tem espaço para dizer de tantos percalços que houve até ele chegar ao agora, ao tempo de reconhecimento, dos artigos publicados. Não foi fácil sair do bairro pardo, da comunidade dos futuros cobradores de ônibus, porteiros, encarregados de serviços, para chegar ao seleto mundo dos doutores. Mesmo sendo doutor que não pode receitar remédio, como os doutores em Filosofia, ph. (quase) Deuses. Doutores que receitam conhecimentos. Em doses homeopáticas.

 

 

Um Comentário

  1. Tino Ansaloni 11/01/2019 em 11:43- Responder

    É um prazer ter esses textos por aqui. São hipnotizantes de tanta leveza e densidade!

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