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Inclusão | Leia “O sorriso de José Mudinho”, por Márcio Messias Belém

Filho de pais surdos, o filósofo carioca Márcio Messias Belém se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade, a Inclusão, principalmente voltada às pessoas com deficiência.

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Por Márcio Messias Belém Publicado em 17/06/2021, 13:33 - Atualizado em 17/06/2021, 13:33
Foto – Márcio Messias Belém. Crédito – Arquivo pessoal. Siga no Google News

O sorriso do José era a coisa mais radiante do que qualquer outra coisa: simetria e dentição perfeitas, combinadas ao rosto característico das pessoas pretas, com lábios carnudos e contornos quadrados no maxilar e maçãs do rosto. Resumindo: José era um preto muito bonito e vistoso, além de bastante elegante e extremamente gentil.

Era esse sorriso que chegava na frente dele, uma espécie de cartão de visitas ou um carro abre-alas, e que o favorecia por ser tão caloroso a ponto das pessoas o acolherem, esquecendo-se por breve momento de outras características que, a depender do local e contexto social, lhe pesariam como marcas negativas: era ele, além de pessoa preta e moradora de comunidade periférica, um recém-adulto deficiente auditivo profundo e bilateral, que comunicava-se usando a língua brasileira de sinais (Libras).  

Sobre o uso de seu recurso comunicativo, José foi bem “safo” porque havia desenvolvido tipos ou modos específicos de se comunicar gestualmente, que no final se fazia compreender por todos. Por exemplo, em sua própria casa, diante de seus familiares ouvintes (José era o único surdo da casa), ele tinha um jargão próprio de comunicação; com os vizinhos e conhecidos, um outro; no comércio local, ainda outro jeito de gesticular, e assim por diante. De modo que era bem conhecido na redondeza, tendo recebido o apelido de “mudinho”.

Peço licença para fazer uma reflexão sobre o apelido social que José recebeu: o termo “mudinho” é bastante depreciativo, haja vista que dá a entender que pessoas surdas são incapazes de falar, o que não é verdade. Elas não são afásicas, pois possuem cordas vocais, podendo desenvolver a fala através de acompanhamento com o fonoaudiólogo, ou de se expressarem através da língua de sinais, como era o caso de José.

O jovem surdo trabalhava como servente de obras junto com o pai, que era pedreiro de mão cheia, e que se orgulhava do quanto seu filho era trabalhador. Por ser bonito, como já havia dito, as meninas da igreja evangélica que a família frequentava, ficavam de olho em José, lhes admirando os atributos físicos, ainda mais que o rapaz investia e ostentava o seu Black, não tendo vergonha de sua negritude.

Porém, não podemos esquecer que estamos falando de um jovem negro, surdo e usuário da língua de sinais, residente em uma comunidade periférica fluminense: essa combinação de características, trazem consigo estruturas históricas que vão do racismo ao capacitismo, e que nas mãos das pessoas erradas, presentes em instituições que ainda insistem em fazer a manutenção desses sistemas excludentes, podem se tornar bem explosivas.

Na tarde de um domingo de férias escolares, o azul do céu estava colorido com todos os tipos de pipas e arraias – e essa era uma paixão que José nutria desde criança: soltar pipas. Ele se sentia livre com elas.

 Distraído em “dibicar” fundo para “cortar na mão” uma outra pipa, não notou a correria na comunidade. Só se ligou quando viu os fogos estourando no alto e depois a presença do helicóptero da polícia. Precisava baixar a pipa e sair dali imediatamente.

Viu, porém, que não dava mais tempo. Tinha que arrebentar a linha e deixar a pipa “avoar na mão”, como se estivesse “estancado cheio de linha”, e correr para a casa, ou entrar em algum lugar que lhe dessem refúgio, o mais rápido possível.

Com dó no coração, foi o que fez, deixando sua pipa ir embora.

Agora, só tenho que correr” – pensou.

Até ensaiou alguns passos, mas desistiu.

Porquê correr, se não sou bandido?”

Foi caminhando, enquanto a favela tampava cada vez mais de policiais, abrindo caminho pelas vielas com o blindado e o apoio aéreo.  

Alguém gritou: “Parado!”

O jovem surdo não tinha como ouvir.

Ô neguinho! Já falei para parar! – Insistiu.

José apressava o passo, com a lata de linha debaixo do braço. Só queria chegar em casa.

Atira, deve ser bandido!” – Gritou um outro.

“Ô rapá, já mandei parar! – deu um ultimato!

José não parou. Não tinha ideia de que recebia ordens para isso.

De repente, o estampido seco do fuzil. O projétil rasgou o ar numa velocidade letal. Dizem que gira entorno de si mesma enquanto segue para cumprir seu destino de mensageira da morte. Não há sentimentos nela; apenas a motivação de arrebatar a vida, sem se importar se é inocente ou não.

O corpo preto é atingido brutalmente, como sempre foi desde o início, em que se dizia, às custas de tantos outros corpos pretos violentados, que se estava construindo um país. A lata de linha ficou imergida na poça do sangue inocente. O fôlego se depreendeu da carne num ultimo suspiro, enquanto as mãos-falantes se encravavam na terra de chão batido, com esperanças de conter a dor da partida abrupta e forçada.

Um momento infinitesimal, e o corpo estancado de José agora jaz sem vida e sem o sorriso contagiante e receptivo de antes.

Bala perdida ou bala achada? “– são expressões tão mais do mesmo.

Tão logo deu-se a notícia da operação policial na comunidade, o pai de José havia saído de casa desesperado para buscar seu filho que soltava pipa perto da antiga pedreira. Ele foi o primeiro a encontrar seu filho caído ao chão, inerte e sem vida. Dois policiais truculentos gritaram ao pai que o rapaz era bandido porque “tinha cara de bandido” e não quis parar quando foi mandado.

Senhor, meu filho não é bandido. Ele é surdo. SUR-DO! E vocês atiraram primeiro para perguntarem depois, como sempre.” – justificou inutilmente.

Os policiais deram com os ombros, enquanto removiam o corpo de José da cena do crime, jogando-o na caçamba de uma viatura, junto a outros corpos de pessoas igualmente pretas e pobres, que sucumbiram naquela operação.

Pra onde vai levá-lo?” – gritou a mãe igualmente aflita e destruída.

Não houve resposta.  

O carro carregando o corpo de José sem vida, junto com os outros corpos, partiu levantando uma nuvem de poeira e dor.

Quem dá conta dessas coisas?

Agora, a imagem de José, com o seu imenso e contagiante sorriso, é só um grafite em um muro da favela. A frase “saudades eternas do José Mudinho” acompanha a pintura.

Mas eu queria mesmo é que ele estivesse aqui entre nós, vivo e seguindo seu caminho: sim, nas favelas tem muita gente que morre de véspera, e não foi Deus quem quis assim.

Sobre o colunista

* Márcio Messias Belém é carioca e graduado em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e pós-graduado em Ensino de Língua Portuguesa aos Surdos como segunda língua pelo INES (Instituto Nacional de Educação de Surdos). Atualmente, faz mestrado em Educação Bilíngue (libras e português).

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