Esses dias me dei a pensar se o tempo era realmente um senhor responsável e dado a benfeitorias morais, visto que há tantas gerações tem ele recebido boa fama, como se fosse naturalmente muito bonachão e de muita liberalidade, disposto a premiar aqueles que são capazes de atravessá-lo, de resistir às dores e de provar das delícias que este velho colecionador de lembranças imprime na sede dos pensamentos e dos sentimentos.
Coisa que não é estranha a vários, ouvir a respeito de figuras pacatas e conhecidas vivendo em suas cidades minúsculas e desconhecidas, já com as marcas no rosto denunciando a velha idade, agraciadas pela riqueza da experiência obtida através do tempo, aconselhando, orientando, corroborando a importância do tempo na formação sapiencial humana, ao mesmo tempo em que se julgaria servirem elas de modelos éticos se alguém ainda as consultasse, se fossem lembradas como um manancial inesgotável de sabedoria vivida, provada, sintetizada e contada à beira da rua, nas janelas, nas praças, na igreja, sem custo algum, apenas a título de prescrição e correção.
Nota-se terem tais agentes uma vontade direcionada à expressão constante do que parece ser probo, ser íntegro, portando convicções morais que são traduzidas em conversas breves, máximas, provérbios, como fossem a verdadeira encarnação oral de um produto prévio de reflexão e de um sentimento de retidão que se manifestam fundidos à ação, ao tempo e à eticidade em uma tentativa. Por outro lado, seriam tais atributos destes agentes condições suficientes para que creiamos e para que ajamos de acordo com o que dizem? Ou mesmo, como poderia se julgar o que é dito, visto que, de acordo com o que falamos acima, se é o próprio tempo quem garantiria tal sabedoria por meio de um conjunto de experiências vividas, quais delas deveríamos termos nós mesmos vivido com certa semelhança para sermos considerados bons juízes, para acreditarmos no que é dito, dado que a ética não é uma produção humana precisa?
A imagem criada acima, ampliada para fins de reflexão como quem rabisca uma caricatura para que enxerguemos melhor certo defeito, decerto não esconde aquilo que é essencial. Refiro-me a este delicioso e tolo anseio de uma certa sabedoria, desta segurança natural resultante do agir na vida, que deveria vir a surgir, de acordo com alguns, de um tempo linear, esperado, onde novos modos de pensar, de agir e de sentir não surgiriam em concomitância com decisões e amor por estas mesmas decisões, mas passivamente, descolados da vontade, tão prontos e tão certos, pré-configurados, vindos ao mundo por generatio aequivoca [geração espontânea], como se em um estalo um certo estado de amadurecimento florescesse.
Sofrer para aprender é a ideia central de todo teatro de Ésquilo, embora eu mesmo não queira sofrer sempre para aprender algumas coisas. Algumas pessoas de meu tempo discordam mais radicalmente de Ésquilo, têm horror ao sofrimento. Dizem que ele não tem nada a nos ensinar, que não quereriam aprender nada se tivessem que sofrer. Eu poderia julgar que tais pessoas, infelizmente, desconhecem o básico a respeito da natureza humana: mutável e falível e, por consequência, geradora de sofrimento. Entretanto, em um certo sentido procuro assentir ao que dizem, pois 1) há mesmo situações específicas de exagerada covardia onde o sofrimento é causado de modo revoltante por pessoas (como, por exemplo, em situações de violência doméstica) ou instituições (racismo, perseguição a certos grupos), 2) ou mesmo em grandes proporções, quando alguma coisa ou alguém com muito poder causa um grande dano à humanidade ou a algum indivíduo, tornando-se difícil compreender em que sentido as periferias, tão distantemente localizadas deste núcleo de poder, devam aprender alguma coisa. Em Persas, do próprio Ésquilo, é difícil compreender o que as mulheres de Susã poderiam aprender com a morte de seus maridos causadas pelas mãos ambiciosas de Xerxes, rei tirano, o qual não poderiam derrubar e o qual não escolheram no poder.
O sofrimento, ali, era um fado inescapável. É verdade que devemos reagir quando somos governados por força cruel, que devemos tentar combatê-la e que também devemos realizar um exercício ativo de memória para que não repitamos os mesmos erros do passado. Entretanto, pergunta-se: seria possível fazer algo a respeito? Aprender não diz respeito a ter de amadurecer emocionalmente enquanto apenas se suporta as ações violentas de um agressor. Não se trata de «romantizar um sofrimento», ainda que aquele que seja capaz de suportar o desabamento de um mundo será galardoado com uma chuva de rosas e poderá ser considerado de heroica estirpe nobre. Quando menciono o fato de termos de sentir dor, trata-se exclusivamente de uma verdade fundamental, a de que o sofrimento é inerente aos seres humanos, pois o movimento de tomada de consciência de si implica em destruição de si, mudança de rotas, de afetos, geração de conflitos, e que portanto o curso natural da história, individual ou coletiva, promove sofrimento, ainda que ele possa ser mitigado.
Agarrar as rédeas da carruagem, ser dono do navio! Ser timoneiro é poder mudar o rumo da embarcação, o que os gregos chamavam μετάνοια (metánoia – a mesma palavra que a teologia utilizou para “arrependimento”): isto é, para sair de uma ação moralmente ou emocionalmente condenável, nos é necessário compreender, ou seja, vir a aprender, deparar-se com uma nova percepção a respeito de algo, unir uma crença interna a uma nova atitude ética. Portanto, não querer, por vezes, sofrer para aprender, comporta um alto risco de ignorarmos as dores causadas seja a quem for e nos priva da possibilidade de mudança, pois a mudança pressupõe estar ancorado em um certo sentimento de rejeição do mal cometido, seja com outros, seja com nós mesmos, uma reação emocional interna, sofrimento interno, movimento de destruição interno. Ressurgir das cinzas, como uma fênix. Quem não é capaz de ser timoneiro, de agir com metanoia, de sobrepujar o que é velho e doentio com o que é novo e salutar, quando avalia negativamente o que fez no passado, olha para suas faltas e é apenas capaz de se envergonhar de si: o olhar paira inerte no fenômeno vivido, e ele petrifica o sujeito como uma medusa. Metanoia, por outro lado, não gera vergonha duradoura, mas perdão de si mesmo duradouro, ainda que uma lembrança difícil possa para sempre nos desagradar. Uma cicatriz deixa uma marca, mas não é recordada para sempre.
Sim, o sofrimento é o sinal evidente de que algo vai errado, assim como pode ser uma pista de que algo maior irá certo para os que têm fortaleza. Por que querer desperdiçar a oportunidade de seguir as pistas deste mestre,que de uma experiência singular nos permite obter sabedoria universal? Provar, deliciar-se com a visão do quanto é capaz de se suportar tendo como propósito o amadurecimento.E que visões, coração, que extremos precisamos navegar! Talvez seja essa uma sabedoria jurássica, que desagrada o paladar contemporâneo, mas que deva ser engolida mediante a recompensa de um prêmio – o de não ter para sempre uma psique imatura, infantil, o de não arder em febre sob a maquiagem.Essa silver lining (o dito “lado bom” das coisas) tem uma têmpera Socrática, tem desejo de dialetizar os desprazeres, vê-los sob múltiplas perspectivas: salvaguarda-nos do de novo, de novo, de novo, de uma vidinha vivida meio à tort et à travers [de maneira irrefletida].
Confiamos no tempo, mas ele sozinho não se encarregará de acordar ou tornar mais sábio quem quer que seja. Podemos, portanto, escolher aprender com o sofrimento, como Ésquilo. Podemos também escolher não querer aprender com o sofrimento, como muitos de nosso tempo. Qualquer seja a decisão da semeadura, a colheita será uma destas consequências: transcender (lê-se: indignar-se com a própria mediocridade, ou com a mediocridade do meio, e tentar mudá-lo) ou repetir. Repetir ou não repetir? Como dizia Calvin: “Vivendo e não aprendendo… esses somos nós”.Tentar se esquivar da dor é agir mirabolantemente como o Barão de Münchhausen, que puxa a si mesmo pelos cabelos enquanto está afundando na lama para se livrar do perigo. Que se possa se nutrir dessa lama, tornar-se como uma flor de lótus.
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