por Valdete Braga Chegou em casa, tomou um banho relaxante e se deitou. Sabia que não conseguiria dormir, a insônia era sua companheira havia tempos, mas queria parar. Parar o corpo, já que não podia parar a mente. O remédio contra a insônia estava sob a mesa de cabeceira, mas ela temia abrir a caixa e não resistir a tomar a cartela inteira. Estava exausta. Precisava descansar. Seu desejo era descansar para sempre. Todas as noites, antes de se deitar, na angústia da espera de ver um novo dia despertar, rezava e pedia a Deus para que não estivesse nele. Por mais paradoxal que parecesse, ela amava a vida. A juventude já se fora, mas ela era uma mulher ativa, independente, dona do seu nariz. Tinha uma vida materialmente confortável e era forte. Sobrevivera à viuvez e à perda de um filho. Não havia um dia em que não se lembrasse dele e do esposo, mas tinha mais duas crianças para cuidar. Não podia sucumbir, e não sucumbiu. Aprendeu a conviver com a dor e seus dois outros filhos cresceram, lhe deram quatro lindos netos e muito amor. Não estava depressiva, nem desejava a morte por sofrimento, e sim por cansaço. Sentia que seu tempo se esgotara. Não havia mais lugar para ela no mundo, pelo menos não neste mundo. Não se encaixava. Tinha outros valores, outra forma de ver a vida, não aceitava o que o mundo se transformou. Um dia, a netinha de quatro anos encontrou-a chorando e perguntou “você está infeliz, vovó?” e ela respondeu, do fundo do seu coração, que não. Suas lágrimas não eram de infelicidade, eram de angústia por viver em um mundo que não era mais seu. Tinha uma linda casa, viajava uma vez por ano, tinha amigos. Não se dava o direito de ser infeliz. Mas ela não podia aceitar como em tão pouco tempo o ser humano mudara tanto. Não foi este o mundo em que ela nasceu, criou os filhos e não era neste mundo que ela queria viver. A filha sempre dizia “mãe, o mundo mudou”. Ela sabia. Sabia e entendia. Mas não aceitava. O mundo mudou e, mesmo que, pela ordem natural da vida, ainda tivesse um bom tempo pela frente, ela não queria este tempo. “Não depende de mim”, pensava. “Deus é quem sabe”. Olhava a caixa dos comprimidos e sabia que jamais faria o que seu coração mandava. Não podia causar esta dor à família e amigos. Não, ela jamais tiraria a própria vida. Mas sofria por não conseguir entender o que ainda fazia em um mundo que não era dela. Mesmo consciente de que não tinha o direito de fazê-lo pelas próprias mãos, tudo o que ela queria era partir. Não por depressão, infelicidade ou dor, mas pela necessidade de ir para o seu lugar, um lugar que ela não sabia qual era, mas tinha certeza de que não era aqui. Estava com 65 anos e pela sua qualidade de vida, sabia que tinha tudo para viver muitos anos mais. Sua vida era super ativa, ela fazia um monte de coisas, fisicamente estava muito bem. Amava a vida, mas detestava o mundo. Queria ir embora. Não entendia um mundo feito por seres humanos como ela, em que filho odeia mãe, pai estupra filha, jovens se matam em gangues, idosos são maltratados... se a vida é uma benção tão maravilhosa, por que os que recebem esta benção constroem com ela este tipo de mundo? Queria dormir, mas os olhos não se fechavam. Criou coragem e abriu a caixa de ansiolítico. Pegou um só, ela era forte, não cederia à tentação. Uma cápsula para o descanso do sono e amanhã seria outro dia. Mas rezou. Rezou muito. Não queria acordar, mas não era dela a escolha. Tudo o que podia fazer era rezar para quem tem a decisão nas mãos ter também misericórdia de sua alma, e libertá-la de uma vida que, mesmo não sendo infeliz, não se encaixa neste mundo de infelicidade. Ah, dona Margarida (nome fictício), como eu a entendo! Eu também amo demais a vida, mas se Deus me desse a graça de poder escolher, com o mundo como está, não chegaria sequer à sua idade.
Deixar Um Comentário