Por Valdete Braga Chovia torrencialmente. Ela se levantou, vestiu um robe por cima do pijama de flanela e saiu à varanda, tremendo de frio. Era madrugada, mas isso não importava, tudo o que ela queria era sair da cama, respirar, mesmo que fosse aquele ar gelado. O companheiro dormia o sono dos justos, enquanto ela, que fora agredida e humilhada, só pensava em morrer. “Denuncie” – era o que os amigos diziam. Mas denunciar como, onde, se nem a família a apoiava? Para os pais, casamento era “para a vida toda” e ela passava a ser “responsabilidade” do marido. “Em briga de marido e mulher não se mete a colher”, ainda que a mulher fosse a filha que chegava em casa duas a três vezes por semana cheia de hematomas e a cada dia visivelmente mais magra, abatida e depressiva. Ela estava a beira do suicídio e ninguém percebia ou fingia não perceber. Agradecia a Deus todos os dias não terem tido filhos. Tanto ela quanto o marido agressor eram jovens, classe média, e ela escondia muito bem as marcas das agressões, para manter as aparências diante da sociedade. Apenas a família e amigos muito íntimos tinham conhecimento do que acontecia entre quatro paredes com aquele casal bonito e freqüentes nas rodas sociais. A família não queria escândalo e a ajudava a camuflar, os amigos aconselhavam a tomar providências e ela se sentia confusa e impotente. Casou-se apaixonada e cheia de sonhos por uma vida longa e feliz ao lado daquele homem que durante todo o namoro e noivado se mostrou gentil e cavalheiro, conquistando todos a seu redor. Além do mais, essas coisas de marido espancar e humilhar mulher só aconteciam na periferia, entre pessoas de “classe baixa”, jamais em uma família conhecida e tradicional. Assim ela aprendeu e cresceu acreditando nisto, até tornar-se, quem diria, ela mesma uma vítima. Nos primeiros meses, acreditava que as coisas pudessem mudar. Mas com o passar do tempo, e a situação ficando mais grave, foi desistindo de viver. E quanto mais grave ficava, mais ela se anulava e mais importante ele se sentia. Parou de reclamar. Não ia mais à casa dos pais e ele passou a freqüentar as festas sociais sozinho. Permaneceu ali, na varanda, olhando a chuva e se lembrando da criança e da adolescente feliz que fora um dia. Da jovem cuja vida estava sendo destruída e dos conselhos dos amigos que ela não poderia atender, porque denunciá-lo significaria mais agressões e mais fortes. Um homem como ele jamais ficaria detido por um delito tão “insignificante” como agressão doméstica. Sem contar a família, que jamais a perdoaria pelo escândalo. Respirou fundo, e caminhou com dificuldade, cheia de dores, até a cozinha. A faca de cortar a carne do churrasco que ofereciam com aparência de casal feliz apareceu em suas mãos sem que ela se desse conta de tê-la pegado. Dirigiu-se ao quarto e em instantes o travesseiro onde o marido dormia tornou-se vermelho pelo seu sangue. Ligou ela mesma para a polícia, e enquanto ouvia o barulho da sirene da viatura que chegava, sorriu um sorriso irônico e triste, pensando em tudo o que suportara, até então, para evitar o escândalo na família.
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