Por João Paulo Silva Mês de junho. Fria tarde de terça-feira. Em Ouro Preto os termômetros não passam dos 21 graus. O encontro com Ewerton Martins, “El Diablo of the Cards” (o diabo das cartas, em uma livre tradução) aconteceu em uma tradicional cafeteria do centro histórico da cidade. O cheiro de pastel frito invade o ambiente. No prédio mal iluminado, pessoas comuns, em suas pausas do trabalho, entre um gole e outro de café, entram e saem em busca de algum conforto. Assim como uma criança que vai ao circo pela primeira vez. Espero encontrar naquele ambiente úmido e escuro alguma coisa que legitime o encontro daquela tarde gelada. Enquanto espero por um café, espreito o ambiente, a fim de encontrar algo capaz de me causar alguma surpresa ou ao menos uma sensação de estranhamento. A entrevista estava marcada para as 17h. Já se vão quinze minutos e ainda não o enxergo... Na minha espécie de “preconceito ao contrário”, espero encontrar, de forma plástica e visível, a caricatura já formada em minha mente. Imagino alguém de rosto maquiado, trajando roupas coloridas e o icônico nariz vermelho. Mais alguns momentos de dúvida. Depois o espanto! O artista sentado ao fundo da cafeteria, com um sorriso travesso, já me observava há algum tempo. Sentado em uma das mesas, lá estava o “palhaço”, trajando um corriqueiro casaco azul. De mais excêntrico, apenas um chapéu coco lembrando Chaplin, cabelos negros e revoltos na altura dos ombros e vivos olhos de criança curiosa. Com o sotaque nordestino que lhe é peculiar, me cumprimentou. Nascido na cidade pernambucana de Caruaru, há nove anos Ewerton Martins escolheu Ouro Preto para viver. Não sente saudades do mar, pois de acordo com ele “Ouro Preto é um mar de cultura, repleto de eventos culturais acontecendo o tempo todo”. O artista-mágico-palhaço parece seguir à risca o conselho daquele outro artista mineiro que disse “todo artista tem de ir aonde o povo está”. A personalidade de Ewerton sugere o todo tempo alguma coisa de nômade, de peregrino, de cigano. Embora já tenha apresentado seu espetáculo em países como França, Espanha e Inglaterra, é para Ouro Preto que ele sempre volta. “Aqui é o meu ponto de retorno. Todo mundo deve ter um lugar para se chamar de casa. Eu viajo, sou meio nômade, mas aqui é a minha casa, o meu ninho. É pra onde sempre volto”, sorri enquanto fala. Ewerton parece o tempo todo nadar contra a corrente. O excesso de visualidades e audiovisualidades, marca registrada no cotidiano do homem contemporâneo, parece não fazer parte do seu imaginário de artista. A sua proposta consiste em viajar o mundo todo com um show usando apenas um baralho de cartas. Essa é a única estrutura do espetáculo, que não faz uso de recursos sonoros ou visuais sofisticados. “A única coisa que conecta o artista ao público é o baralho. As cartas são o elo. O espetáculo é uma idealização minha. É um show de aproximadamente uma hora”. Pode parecer utópico e até mesmo romântico, mas Ewerton conseguiu a proeza de viajar o mundo inteiro com um show no bolso. O seu espetáculo é pautado na improvisação e na interatividade. Não tem roteiro, repertório, nada é pré-definido. “Eu sempre sei como começo. Mais ou menos, como termino, mas o meio é construído na hora, com o público”. É um espetáculo que se comunica diretamente com o público que participa e interfere o tempo todo. “O público constrói o show junto comigo. Por ser totalmente interativo, ele permite ser adaptado a vários lugares, países e personalidades distintas”. Outra característica interessante está no fato de o seu personagem não ter um nome. “Isso o torna mais misterioso. Ele vai se transformando, eu vou aprendendo mais com as pessoas e ele vai mudando, adquirindo novas nuances, assim como Chaplin, assim como Mazzaropi, assim como Didi mudou ao longo dos anos, embora a essência seja sempre a mesma”. O espetáculo joga com algo que é universal, com coisas que são risíveis em todas as culturas, mas ao mesmo tempo com toda a abertura proporcionada pela improvisação. “Uma apresentação nunca é igual a outra, sempre é diferente”. Micro e macro se fundem. Ewerton é, sobretudo, um cosmopolita. O artista parece mais preocupado em aguçar as suas antenas do que em cultivar as suas raízes. Talvez Ewerton seja fruto de uma geração hipermoderna, que busca criar sentidos para se expressar. Se gerações anteriores à sua usavam a arte para demonstrar insatisfação contra certa ideologia dominante, ele parece preocupado apenas em se expressar. Estudou na École Philippe Gaulier (sediada a poucos quilômetros de Paris), considerada uma importante escola na formação de palhaços. Foi para França com poucos euros no bolso, morou ora em espeluncas, ora de favor na casa de amigos, trabalhou em subempregos, quebrou a cara, adquiriu experiência. Com o mestre Gaulier apreendeu o conceito de “flop” e o aplicou na vida e na arte. Se você já tentou realizar alguma coisa com o intuito de ser amado por alguém, se já se preparou por um longo período pensando que o final seria maravilhoso, que todos iriam lhe amar e aplaudir de pé e de repente constatou que tudo não passou de um fracasso, você sabe o que é flop. Sabe aqueles momentos em que após um fracasso parece que algo morreu aqui dentro? Sabe aquilo que “desajeitadamente tenta um pequeno vôo e cai sem graça no chão?” Isso é flop. Em uma sociedade que cobra o tempo todo, principalmente dos mais jovens, um sucesso muitas vezes inalcançável, flopar é fundamental. “É através do flop que se aprende. O palhaço é um revolucionário. Ele pode cair mil vezes, mas sempre irá se levantar. O palhaço é um idiota que quer fazer algo que não domina. Um idiota querendo ser amado pelo público mesmo sem ter nenhuma habilidade no que se propõe a fazer”. Mas por que as pessoas continuam amando o palhaço? – interrogo. “Primeiro porque ele sente prazer, você nunca vê um palhaço se lamentando, mas sempre tentando, se divertindo, lutando. O palhaço luta para ser amado pelo seu público. O palhaço nunca ganha, porém jamais é derrotado”. No período de 15 a 24 de Julho, sem qualquer incentivo ou patrocínio financeiro, o “Diabo das Cartas” irá se apresentar no Hamilton Fringe Festival no Canadá. O importante evento está em sua 13ª Edição e reúne artistas da música, dança, teatro e inúmeras expressões artísticas em mais de 300 performances. Ewerton Martins foi o único artista brasileiro convidado a participar do festival. Terminada a entrevista (eu não sentia mais frio) antes que nos despedíssemos, lamentei o fato do artista não ser reconhecido em Ouro Preto, lugar que tanto ama e escolheu para chamar de seu. Mas quem sabe o artista não esteja apenas flopando por estas bandas enquanto ensaia o seu grande e belo “salto vital”? Talvez ele nem saiba, mas com o palhaço sem nome eu aprendi a incrível arte de flopar. Aprendi, sobretudo, a olhar para os meus fracassos com amor.
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