Antonio Marcelo Jackson* Duas semanas após o pior desastre ambiental da história brasileira e das mortes causadas pela ruptura da barragem em Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana-MG, nos é possível tirar algumas conclusões. Lembrando que não tenho formação em engenharia e posso tão somente analisar sob o ponto de vista histórico e político-jurídico, uma primeira observação a ser feita diz respeito a definir as mortes na localidade: trata-se de um crime doloso, pois na medida em que há dois anos averiguações detectaram problemas estruturais na referida barragem e nada foi feito, então a Samarco e suas proprietárias (a VALE e a BHP, da Austrália) assumiram o risco de matar. Essas pessoas foram assassinadas, simplesmente. Um segundo aspecto também na esfera da empresa diz respeito às ações promovidas após a ruptura: eestringindo-se a hospedar os sobreviventes em hotéis da cidade de Mariana, a Samarco, VALE e BHP pouco se importaram com as consequências que a enxurrada de lama levaria às cidades e localidades seguindo o nível do terreno e o fluxo dos rios. Não custa lembrar que as ações das ditas empresas nas regiões afetadas pela lama ocorreram somente após a passagem dos detritos e não antes, como se poderia esperar. Como terceiro item, temos as falas da empresa a partir das intervenções de seus diretores: que “foi um acidente” e que a “Samarco não deve pedir desculpas à população de Mariana”. Salvo engano, a palavra “acidente” indica algo inesperado, surpreendente, e no caso da ruptura da barragem isso não se aplica, conforme foi dito acima a respeito da avaliação realizada em 2013 por técnicos. Quanto a “não pedir desculpas” isso entra fácil no rol dos dizeres absurdos que um diretor de grande empresa é capaz de verbalizar e do real sentimento de descaso que o mesmo tem pela população mais humilde. Nesse sentido, o quarto item é complemento das últimas linhas do parágrafo acima. Sabendo que não poderia captar água do Rio Doce ao longo de inúmeros dias, a prefeitura de Governador Valadares solicitou ajuda e a VALE enviou para o município alguns tanques contendo o precioso líquido em vagões de trem. Qual a surpresa de todos ao perceberem que a água tinha “cheiro de querosene” e a VALE retrucou imediatamente dizendo que os tanques jamais foram utilizados para transporte de combustível. Entretanto, pouco importando para qual finalidade os tanques eram utilizados, o fato é que não estavam em condições de transportar água para consumo humano e, mais do que isso, a empresa sequer se incomodou em verificar: encheu-os de água e enviou o material para Governador Valadares. Se existe um bom exemplo para a palavra “desumano” creio que isso se aplica. Ainda na esfera da empresa e já vinculando às relações promíscuas com a política, não custa lembrar todo o envolvimento da VALE no financiamento de campanhas eleitorais. Num sutil levantamento apresentado pela TV Bandeirantes a referida empresa gastou 80 milhões de reais na última campanha para financiar três candidatos a Presidência da República (desnecessário dizer os nomes de Dilma Rousseff, Aécio Neves e Marina Silva), 18 candidatos a Governador de Estado, 19 candidatos ao Senado Federal, 261 candidatos a Deputado Federal e 599 candidatos a Deputado Estadual. Nessa lista, o maior beneficiário foi o PMDB, partido que possui quase a exclusividade da pasta do Ministério das Minas e Energia e detém o maior número de assentos no Departamento Nacional de Produção Mineral, órgão responsável pela fiscalização das mineradoras. Assim, fica fácil explicar o porquê de existirem somente quatro fiscais em todo o estado de Minas Gerais para dar conta de suas 735 barragens. Desnecessário ressaltar que o “investimento” da dita empresa não dá margem para dúvidas quanto à subordinação de possíveis eleitos de qualquer partido político aos interesses da mesma. Aliás e a propósito, a VALE não apenas financia as candidaturas de políticos: inúmeras vezes a empresa assume os custos da construção e funcionamento de laboratórios em universidades pelo país. Até aí, nada demais: isso é coisa comum em qualquer lugar do mundo e algo em princípio bem saudável, pois vincula a formação acadêmica com a atuação propriamente no mercado de trabalho e na produção. Entretanto, curiosamente existe em área relativamente próxima à barragem que se rompeu uma “pequena, pacata, “tipo NET”, Universidade Federal onde existem cursos como engenharia ambiental, engenharia de minas, engenharia civil, geologia, entre outros, vinculados ao tema em tela, e ao longo dessas duas semanas a maior parte dos professores e pesquisadores fugiu como o “diabo foge da cruz” das emissoras de televisão, rádio, jornais e sites da Internet para a concessão de uma singela entrevista buscando explicar o que aconteceu. Será que isso se vincula a inauguração há pouco tempo de um laboratório financiado pela VALE nessa dita instituição de ensino? É um caso interessante de se verificar. Por fim, temos o comportamento da Prefeitura de Mariana e da população local. De um lado, há a indignação e revolta pelo ocorrido; de outro, o quase implorar aos órgãos competentes para que não encerrem as atividades da Samarco na região. Qualquer aluno do ensino fundamental aprende que das inúmeras atividades econômicas a mais basal e predatória é o extrativismo: retirar da natureza sem se preocupar com os custos disso é algo que remonta as origens da espécie humana e já está mais do que comprovado o estrago que pode gerar. E de todos os modelos extrativistas, a mineração é, sem dúvida, o que mais destrói o meio onde opera. Não é à toa que nos países desenvolvidos a atividade mineradora é acompanhada desde seu início pela construção de alternativas econômicas – uma lição que foi duramente aprendida em inúmeras sociedades -, seja pela capacidade predatória conforme já citei, seja porque se é extrativismo, então um dia inevitavelmente acabará. Desconheço qualquer ação em Mariana ou nos demais municípios mineradores nesse sentido: ao contrário, aceita-se sem embargo a dependência explícita da extração de minério do solo sem a menor preocupação com o amanhã, como se aquela atividade deixasse inúmeros frutos férteis ao invés da pura e simples degradação da área. Em outras palavras, há sem dúvida uma acomodação tanto das prefeituras quanto da população, o que apenas fortalece a posição da Samarco e de suas proprietárias. Sabe-se que algumas pessoas chegaram mesmo a organizar uma manifestação em solidariedade a Samarco em Mariana (?!). Para encerrar esse item, a dependência exclusiva da mineração é, além de tudo, uma burrice econômica, visto que, o minério é uma “commodities” (expressão inglesa que significa em última análise uma mercadoria que serve para produzir outras), o que faz depender de maneira absurda dos interesses do mercado exterior. Apenas para se ter uma ideia, nos últimos anos os principais compradores de minérios no mundo (notadamente a China) preferem adquirir na África suas commodities minerais, em detrimento do Brasil, fazendo com que o PIB (Produto Interno Bruto) de Minas Gerais despencasse tremendamente nesse mesmo período. Frente a tudo isso, podemos chamar a ruptura da barragem de “acidente”? Acho muito pouco provável. Desnecessária qualquer conclusão. *Doutor em Ciência Política. Professor da Universidade Federal de Ouro Preto.
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