Antonio Marcelo Jackson F. da Silva Doutor em Ciência Política; professor da Universidade Federal de Ouro Preto Retomando os trabalhos após algumas semanas de descanso e aproveitando as inscrições no SISU das universidades federais e ao pedido de uma querida amiga, creio ser oportuno falarmos um pouco sobre a questão das cotas que invariavelmente são alicerçadas a item de debates acalorados no dia-a-dia do país; e o primeiro item é termos uma (ainda que) sucinta noção do processo histórico e político que criou tal modelo. Escolhida como ponto inicial de nossa análise, a democracia ateniense de dois mil e quinhentos anos atrás optara pelo sorteio na hora das escolhas dos governantes e a decisão da maioria no momento dos debates. O sorteio, opção mais democrática que se conhece por deixar a decisão “nas mãos e humores dos deuses”, era acompanhado da escolha da maioria nas decisões cotidianas numa época em que inexistia qualquer entendimento sobre individualidades ou escolhas pessoais: para o grego clássico, assim como também para todas as sociedades da Antiguidade européia, a “coisa pública” era a única condição social plausível e, portanto, aceitável. Esse entendimento foi o mote de todos os argumentos (democráticos ou não) no passar dos séculos e gerou como conseqüência dois conceitos bastante utilizados na Idade Moderna e ainda presentes nos dias atuais: a liberdade positiva (aquela que se refere às ações de cada pessoa no espaço público) e a liberdade negativa (notoriamente vinculada aos interesses particulares de cada indivíduo). Observa-se, portanto, que o entendimento ao longo de aproximadamente dois mil e trezentos anos da existência quase inquestionável do público em inequívoco detrimento daquilo que é ímpar tornava mais do que aceitável a ideia de que a decisão de uma maioria qualquer não poderia ser duvidada (o grupo de derrotados seria, em última análise, apenas um lamentável desvio da “coisa pública”). Porém, há pouco mais de duzentos anos consolidou-se aquilo que, por falta de palavra melhor, chamamos de individualidade. Em outros termos, os últimos dois séculos passaram a conviver o paradoxo de aceitarmos, de um lado, o entendimento de que o público deve ser considerado como referência aos atos políticos e administrativos e, de outro, a certeza de que as individualidades deveriam ser, de algum modo, preservadas. Tal fator produziu uma mudança nos debates políticos em inúmeros locais para se produzir uma fórmula que desse conta do paradoxo (afinal, como privilegiar o todo e as partes concomitantemente?); e nem mesmo o Brasil ficou imune a essa “crise”. A essa nova condição criou-se a expressão “direito das minorias”, visto que, majoritariamente os debates convergiram para a ideia de que qualquer decisão tomada por uma maioria, indiscutivelmente geraria algum nível de opressão ao prolixo conjunto de derrotados. Dito de outra forma, o novo paradigma político passou a afirmar que toda a maioria é tirânica em relação à minoria; que, sem colocar em xeque à opção escolhida, a opinião dos derrotados não poderia ser pura e simplesmente descartada (daí a expressão “direitos das minorias”). Entretanto, de que maioria e que minoria estamos tratando? Num primeiro momento, sem dúvida, o assunto se refere a uma eleição. Contudo, com o passar do tempo o entendimento foi ampliado e passou a se considerar também toda e qualquer ação que envolvesse o poder ou algum setor da vida política e/ou social em que determinados segmentos da sociedade não tivessem acesso. Explica-se. Na medida em que por inúmeras razões historicamente produzidas percebe-se a exclusão de um grupo social do acesso a algum bem ou serviço, torna-se necessário a ação do Poder Público para gerar determinados instrumentos que quebrem esse caráter excludente e produzam, ainda que de forma artificial, um equilíbrio. Não se quer dizer, insisto, no esquecimento de que existe uma maioria ou que essa maioria deva ser desconsiderada, mas sim, em se evitar pelo ato do Estado que a maior parte seja tirânica. Alguém pode retrucar: “mas, tal ato do Poder Público também não é uma tirania?”. Sem dúvida que a resposta é afirmativa. Porém, não nos esqueçamos de que a consolidação da ideia de indivíduo trouxe à baila o conjunto sem-fim de desigualdades produzidas pelas sociedades ao longo dos séculos. Porém, o Estado representa todas as partes que compõem a sociedade (maioria e minorias), ou seja, se for necessário que o Estado gerar atos imperativos para se ajustar este ou aquele setor, então esse ato é necessário. Afinal, não é a partir do veneno que se produz o antídoto? – vale a metáfora. Inúmeros são os exemplos de “direitos das minorias”. Poderíamos começar com o conjunto de ações que ao longo das décadas foram produzidas para se garantir o direito das mulheres (as sociedades são machistas, salvo engano meu, e excluem as mulheres historicamente); em sequência podemos apresentar as Leis Trabalhistas (afinal, na relação capital/trabalho o operário não detém os meios de produção e, portanto, é a “minoria”). Desnecessário discutir o caso dos portadores de necessidades especiais e a necessidade de alguma proteção, no melhor sentido do termo. Para encurtar, ao final temos as cotas nas universidades públicas. Poderia dissertar a partir de inúmeros exemplos sobre o racismo presente nessas instituições e a necessidade de algum ato imperativo. Mas, cito apenas um caso; vejamos os cursos de medicina no país: há uma diversidade racial nessas faculdades ou é difícil encontrar alguém com a pele negra nesses bancos escolares? Estariam os negros predispostos a não freqüentarem as áreas biomédicas? Nunca ninguém estranhou isso? Será que foi a soma de nosso dissimulado racismo com a não presença de negros nas faculdades de medicina que sustentaram aquele comentário infeliz da repórter Micheline Borges, do Rio Grande do Norte, dizendo que as “médicas cubanas tinham cara de empregada doméstica”? Por fim, será que nossa sociedade é tão preconceituosa que os membros de suas elites continuarão a praticar tiranias diárias em nome de uma democracia que eles nem mesmo sabem o que significa? Antonio Marcelo Jackson F. da Silva Doutor em Ciência Política; professor da Universidade Federal de Ouro Preto
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