Leia ‘Ciata e a Roda que Gira a Vida e o Samba’, pelo historiador Carlos Versiani                                                             

Saiba mais sobre a História do samba, homenageando Tia Ciata, na casa de quem se originou o samba, no Rio de Janeiro. O samba e o carnaval são expressões culturais de todo o Brasil, das maiores riquezas dessa cultura afro-brasileira.

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Por Carlos Versiani Publicado em 21/02/2025, 17:36 - Atualizado em 21/02/2025, 17:36
Tia Ciata (1854-1924) Fonte: https://portalumbu.com.br/ Siga no Google News

Hoje desço do pequeno berço em que nasci, no distrito de Santo Amaro da Purificação, e viajo de novo o caminho de volta sobre as águas atlânticas ancestrais, para revisitar, com a benção dos espíritos da mata, os antigos parentes de Angola. E entoo, às margens do rio Cabundo, da língua Kibundo, a palavra sagrada. SEMBA! E formam-se nas nuvens, como pintura, as imagens de meninos e meninas na roda a requebrar, em meio às palmas e tambores, a dança da umbigada...

As mesmas nuvens se dissipam, revelando de novo o sol do recôncavo da Bahia. E me vejo ali também menina no Terreiro, ensaiando os mesmos passos que junto aos pretos e pretas da nação Ketu também aprendi a dançar.  E dali, torno-me a mãe baiana filha de Oxum. E dali partimos, eu, Bebiana de Iansã, Carmem, Monica, Amélia e Perciliana, com nossos vestidos rodados, turbantes, colares, pulseiras e patuás; nossos tabuleiros, quitutes e miçangas; nossas rezas, danças, cantigas e orixás; em meio à vasta migração da negritude baiana partimos para o Rio, libertas das correntes, presas à tradição.

Tudo é muito bonito e muito triste no Rio de Janeiro que agora revejo, na dobra dos séculos passados. As máquinas e a modernidade avançam sobre as ruas e casas, transformando as praças e a orla das praias. E é nos morros, transfigurados sob o corte das vielas, que os pretos encontram guarida. Formam-se então os bairros africanos, que acolhem em suas plagas os descendentes da África. Mas depois que nós, migrados nordestinos, os ocupamos e os transfiguramos, os bairros passaram a se chamar favelas, por respeito à flor migrante do faveleiro, que dantes só crescia no sertão da Bahia e das Alagoas...

Mas não. Antes que as máquinas se apoderassem de todo o centro do Rio, foi ali mesmo que firmei o meu pé, que eu e meu preto nos arranchamos. Ali pari meus 14 filhos e levantei as paredes dos quartos em que cresceram os rebentos. E na nova casa grande, herdeira da velha senzala, entrou o batuque das palmas, dos tambores e do pandeiro, junto com o sopro fino das flautas, com o choro sofrido e bonito do cavaco e do violão. E ali se juntou o batuque, a reza e a cachaça. E ali o passo da dança virou miudinho, nos pés do meu neto Bucy, de Donga e João da Baiana.

Mas a ordem da lei contra o som e a festa dos pretos nos fez levar o batuque para o exílio consentido do terreiro, deixando à vista da rua e da polícia só o chorinho permissivo, no chão da sala. E assim, nesse fuzuê, nesse mundo da magia e da graça, o semba virou samba na casa da tia Ciata. E a negrada desceu o morro cantando, sob o comando das tias baianas, e no pagode festivo da Praça Onze construímos nossa Pequena África.

E não pensem vocês, que hoje escutam a voz desta afortunada visitante do passado, que tudo era só alegria nesse samba baiano e carioca. O preto e a preta continuavam marginais e sua festa muitas vezes confinada nos guetos. Hoje violão é instrumento clássico, valorado. Mas ai de um preto que fosse visto pela polícia carregando nas costas, horas mortas da noite, um violão.  Era certo que já se encaminhava para a festa amaldiçoada, a festa que misturava batuque, candomblé e cachaça. Mas isso foi em antes. Depois o samba na casa de tia Ciata passou a ser respeitado, desde o dia em que curei, com ervas e benzeção, uma ferida incurável na perna do Venceslau, o próprio presidente do Brasil.

 E foi juntando a gente bamba, Donga, Pixinguinha, Heitor, Sinhô e outros tantos, filhos das outras tantas tias baianas, que aqui na minha casa o samba virou partido alto, juntando a herança do batuque, do calango e do lundu, no cordão dos versos que não tinham dono nem gravação. Até que o Donga de Amélia, menino levado, resolveu por si próprio levar para a gravadora dos brancos um samba que já era cantado e recantado por todo o morro, cada qual com seu refrão. E hoje recordo bem, tomada pelos espíritos do passado, o sucedido naquele dia.

Eu estava no fogão, preparando a janta, e a meninada em algazarra, atrapalhando o Heitor dos Prazeres de afinar o seu violão.  E chega naquela agitação o Donga, todo satisfeito, balançando um disco na mão: “Aí, tia, gravei, gravei meu primeiro samba!!!” Heitor parou de tocar na mesma da hora: “Que vantagem, hein? Que samba é esse Donga?” E Donga cantou: “O chefe da polícia pelo telefone mandou avisar...” Heitor então embraveceu: “Eita que esse samba é seu Donga? Esse samba é de todo mundo!” E Donga, sempre brincante, arrematou: “Não, de jeito maneira, Heitor. Esse samba eu peguei ar... E samba é que nem passarinho, é de quem pegar...” Donga, de vera, muito atrevido, mas foi assim que o samba rompeu as fronteiras do morro, do batuque na casa das tias baianas e começou a tocar também na vitrola do branco, chegando aos quatro cantos da cidade maravilhosa...

E a Praça Onze desde então nunca foi a mesma. E no carnaval pegava fogo, com a mistura entre os cordões dos mascarados, os ranchos e os blocos dos pretos, onde imperavam as baianas, vestidas a rigor, como manda a tradição. E ao depois, quando na festa popular se juntaram os carros alegóricos dos clubes carnavalescos dos ricos, tudo virou um verdadeiro pandemônio. E assim nasceram as escolas de Samba do Rio de Janeiro. E o samba do partido alto, do samba duro, do samba de breque e do samba canção, também virou samba enredo das escolas dos morros do Rio, na mistura boa e festeira da música afrobrasileira.

E hoje desço do berço em que nasci, e do destino que escolhi, para dizer que prestem bastante atenção, quando virem passar no carnaval a ala das baianas, maior tesouro das escolas de samba. Prestem bastante atenção, que ali também estaremos a rodar as nossas saias, as antigas tias baianas: Ciata, Bebiana, Amélia, Carmem, Mônica e Perciliana. É nessa roda que ainda gira o samba, gira a vida e gira o tempo, como a roda de um moinho, movido pela força das águas que atravessam as matas e as montanhas e desaguam nos oceanos, arrastando as histórias e a memória do mundo.

Sobre o autor

Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro.

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