Procurando algo interessante que teria acontecido em Ouro Preto nos séculos passados, nesse período comemorativo do natal, e não encontrando nada digno de nota em nossos alfarrábios, resolvemos tomar como fonte as preciosas Efemérides Mineiras, de José Pedro Xavier da Veiga[1], que descrevem, para cada dia do ano, acontecimentos ocorridos em Minas Gerais entre 1664 e 1897. Consultando, porém, nas Efemérides, notícias referentes aos dias 24 e 25 dezembro, não encontramos nada que se referisse especificamente às comemorações natalinas, seja com teor religioso ou profano.
Certamente, a dimensão comercial do natal, relacionada à figura do Papai Noel, inexistia no Brasil até o início do século XX. Essa tradição tem origens distintas, remetendo tanto a heranças cristãs, através do culto ao santo Nicolau, quanto à mitologia antiga dos países nórdicos, em que a divindade denominada Odin seria responsável por distribuir presentes às crianças durante o solstício de inverno. Noel teria chegado à América do Norte através de imigrantes holandeses, ao final do século XVIII. Já a sua associação com São Nicolau se popularizou nos Estados Unidos a partir de um poema publicado em 1823 por Clement Moore, “A Visit from St. Nicholas” [2]. No Brasil, a imagem do Papai Noel só começaria a ficar conhecida entre as décadas de 1920 e 1930, quando a marca de refrigerantes Coca Cola divulgou internacionalmente uma propaganda apresentando o “bom velhinho” como um idoso barrigudo com longas barbas brancas, que se veste de vermelho e distribui presentes na noite de natal.
Como as Efemérides Mineiras foram publicadas no ano de 1897, seria impossível, portanto, que trouxesse algo relacionado a este caráter comercial do natal, associado à figura de Papai Noel. Também seria incomum trazer notícias sobre os festejos e tradições natalinas que já ocorriam popularmente em Minas, como na construção de presépios e nos folguedos natalinos, a exemplo das Pastorinhas e da Folia do Divino. Isto porque as Efemérides destacavam essencialmente datas de acontecimentos excepcionais ocorridos em Minas Gerais, privilegiando a descrição de eventos políticos.
Mas a nossa pesquisa não podia passar em branco. Então nos deparamos nas Efemérides com um trágico acontecimento, que teve lugar em Ouro Preto, na noite de 24 de dezembro de 1873. Hoje, em tempos de grande ocorrência de eventos climáticos extremos, a notícia talvez fosse recebida com certa naturalidade, mas à época deve ter causado muito transtorno e comoção à toda população ouro-pretana. Trata-se da descriçao de uma tempestade colossal, que desabou em plena noite de natal por toda a cidade, destruindo casas, pontes, estradas e plantações:
À noite, cai sobre a cidade de Ouro Preto medonho temporal, que causou grande susto à população e fez enormes estragos. Quase todas as casas sofreram mais ou menos, ficando muitas delas de todo inundadas. Caíram muitos raios; a estrada do Saramenha ficou obstruída; diversos moinhos desapareceram; muitas plantações ficarão submergidas na areia; a grande ponte da Barra, obra colossal de pedra e antiquíssima, foi destruída; o altíssimo e sólido Cruzeiro, ereto a esforços de Frei Coriolano, ficou partido; por toda a parte destroços da horrível tempestade. Felizmente não ocorreu nenhuma desgraça pessoal.[3]
Observamos na descrição de Xavier da Veiga referências interessantes, à estrada de Saramenha, à ponte da Barra, aos antigos moinhos e a um “altíssimo e sólido Cruzeiro”, que se partiu com o impacto da tempestade que caiu. Não soubemos precisar qual seria este Cruzeiro, que fora construído à época pelo Frei Francisco Coriolano de Ottranto, missionário itinerante da ordem dos Capuchinhos, que viajara a partir de 1755 por várias cidades de Minas, sempre dedicado ao trabalho em construções religiosas.[4] O certo é que a população da então capital mineira teve um Natal bastante sofrido, há 151 anos atrás. Mas é certo também que a união solidária de todos pôde reconstruir tudo o que foi destruído e manter viva a fé e a esperança de um próspero ano novo.
São também nossos votos, ao finalizar este pequeno artigo, que o espírito amoroso do Natal possa manter acesa e forte a chama da paz e da solidariedade, não apenas em Ouro Preto, mas em todo o mundo, tão imerso em guerras, violências e catástrofes, como as que vivenciamos neste sofrido ano de 1824. Axé!
[1] VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemerides Mireiras (1664-1897). Ouro Preto: Imprensa Official do Estado de Minas, 1897. José Pedro Xavier da Veiga foi fundador e primeiro diretor do Arquivo Público Mineiro, fundador e primeiro editor da Revista do Arquivo Público Mineiro.
[2] Ver: https://poets.org/poem/visit-st-nicholas Acesso em 24/12/2024
[3] VEIGA, José Pedro Xavier da. Ephemerides Mireiras (1664-1897), ob, cit., vol. IV, p.398.
[4] Ver: https://www.capuchinhos.org.br/pessoas/frei-francisco-de-otranto-ofmcap Acesso em: 24/12/2024.
Sobre o autor
Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro.
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