Em plena semana de aniversário dos 313 anos da elevação dos antigos arraiais do Antônio Dias e do Pilar à condição de Vila, trago um artigo que discute as ações da Câmara de Vila Rica, a partir de edital publicado durante o governo de Cunha Menezes (1784-1788), período de franca decadência aurífera, em que se percebe um crescente autoritarismo e distanciamento do governante das Minas com as redes de poder local, o que favoreceria o aparecimento das ideias de sedição. Quanto ao Senado da Câmara, então denominado “cabeça do povo”, percebe-se uma alternância de atitudes, ora buscando assegurar a ordem pública, conforme as leis e critérios metropolitanos, ora procurando satisfazer as necessidades cotidianas da população local, o chamado “bem comum”.
Tomando, então, as representações da Câmara de Vila Rica durante o governo de Cunha Menezes, podemos ter uma ideia da forma atribulada com que a população vivia o seu cotidiano, e como seus representantes legais procuravam solucionar os graves problemas econômicos. Utilizamos, como base para este artigo, um edital que fora afixado, ininterruptamente, de 1783 a 1788, durante cinco anos, nas ruas de Vila Rica e termos.1 São inúmeras restrições, que versam principalmente sobre a apropriação particular de coisas e lugares considerados de utilidade pública. Chamamos atenção que o grande número e a repetição das leis repressivas da Câmara não significa que as mesmas fossem exemplarmente cumpridas. Pelo contrário, a insistência da publicação de um edital durante tantos anos, e com as mesmas restrições, é sinal de que as contravenções ao mesmo persistiam. Este seria mais um capítulo da história da resistência às normas por parte da sociedade mineira e vila-riquenha durante o período colonial.
Temos nesse edital uma confirmação de que era cada vez maior a interferência naquilo que o sistema considerava de "utilidade pública". Sustentando esta ideia está por exemplo a apropriação considerada "indevida" dos chafarizes, cuja função “oficial” parecia ser a de saciar a sede de equinos, levando o Senado a decretar que aquele que fosse achado "lavando roupa, ou outra qualquer coisa nos chafarizes desta vila e tanques do mesmo, aonde bebem as cavalgaduras, com gravíssimo prejuízo delas", deveria ser condenado a uma oitava de ouro. No auge da decadência da mineração, nem mesmo as paredes e calçadas de Vila Rica seriam poupadas pela sede de enriquecimento dos seus habitantes, o que fez a Câmara decretar:
"Toda a pessoa que for achada cavando, ou faiscando nas calçadas e paredões desta vila (...) com ferros e outro instrumento que sirva de tirar-lhes as areias, seja preza e da Cadeia não será solta sem que primeiro satisfaça uma oitava de ouro de condenação, sendo forra, e se for cativa assistirá seu senhor. Toda pessoa que na sua testada consentir os tais faiscadores será condenada em uma oitava de ouro paga de cadeia."
Interessante observar, no referido edital, uma marcante distinção entre direito e ordem pública; distinção esta mascarada artificialmente no discurso colonial reproduzido pelas câmaras. Havia atividades que os senados precisavam regular ou coibir porque feriam o usufruto ou bem-estar da maioria. Seriam, portanto, contrárias ao direito público, ou "bem comum". E as câmaras, como "cabeça do povo", coibiam. É o caso, por exemplo, das restrições impostas pela Câmara aos comerciantes ou tropeiros, não preocupada se eles constituíam um dos principais escoadouros do contrabando, mas se estavam lesando o patrimônio do povo. Tal é a essência da lei que obrigava ...
"[...] os lavradores, ou outras quaisquer pessoas, que nesta vila e arraiais do termo venderem farinha, ou viveres semelhantes conduzidos nas suas tropas a trazerem a dita farinha bem condicionada em sacos, e que não seja azeda com mau cheiro (...) debaixo da pena de prisão, e de duas oitavas de ouro de condenação, e de perdimento da mesma farinha."
Citamos também as restrições da Câmara àqueles que vendiam pão, obrigando-os “a fazê-lo em forma que depois de cozido fique com o peso de dez onças, pelo preço de dois vinténs de ouro cada um, debaixo da pena de 2 oitavas de ouro (...) e perdimento do dito pão que for achado em vendagem com diminuição do dito peso." Ou ainda a exigência de que "toda pessoa que andar nesta vila, e seu termo, vendendo cousas comestíveis" fosse obrigada "a trazer balanças, e medidas aferidas conforme o gênero que vendem". Pelo rigor e detalhes das leis contra o abuso dos comerciantes, podemos inferir que estes eram tão bons em lucrar ilicitamente nas vendas quanto o eram em ludibriar o fisco.
Por outro lado, havia aquelas atividades que eram reprimidas por significarem um rompimento com uma ordem pública pré-estabelecida. Ordem esta que não beneficiava necessariamente a população, indo muitas vezes contra a realidade social da colônia. Mas que era determinada pelas leis metropolitanas, pelos interesses e cuidados do sistema colonial. E as câmaras, como instrumento de manutenção do sistema mais próximo da população, tinham que coibi-las. É o caso da proibição de "vendagens pelas Lavras, e passagens de minas", só permitindo "semelhante exercício pelas ruas desta vila e arraiais do termo." Ou ainda a ordem para que "nenhuma pessoa de qualquer qualidade e condição" fizesse sabão na "demarcação da sesmaria ", compreendendo na mesma pena...
"[...] as pessoas que dentro na mesma demarcação cortarem os respectivos matos para fazerem carvão salvando por este meio o prejuízo do público que tanto se interessa na conservação dos ditos matos para as lenhas, e mais madeiras de que usam os mineiros nas suas minas".
Será que os povos realmente viam mais necessidade da madeira na mineração, em franca decadência em Vila Rica, ou o verdadeiro motivo da ordem era que a mineração permanecesse ainda como prioridade do sistema, à mercê de outras atividades que se desenvolviam naturalmente na capitania?
O fato é que os senados eram definidos como instituições políticas que possuíam, além do poder de intermediar as reivindicações que tratavam do bem-estar da coletividade, ou seja, que tratavam do bem público, as funções de vigilância sobre as leis régias e de manutenção da ordem interna nas vilas e seus termos. Em suma, os senados se encontravam no centro daquela contradição maior do sistema colonial, que é a contradição entre os interesses “fiscais” da metrópole e a realidade interna da colônia. Nas instruções que se referem aos negros, por exemplo, percebemos uma mescla de temor de "ofensas" praticadas por escravizados ou quilombolas, e a preocupação do sistema colonial pela inserção cada vez maior de negros e pardos em atividades particulares autônomas. É o que revelam as instruções a seguir:
“Toda a pessoa que alugar casas a pretos, ou pardos cativos, sem licença dos seus senhores, pagará quatro oitavas de ouro de condenação, além da pena de prisão a nosso arbítrio; e os escravos que nelas se acharem serão presos, e da cadeia não sairão sem expressa ordem nossa".
"Proibimos aos pretos, e pardos cativos o uso de facas flamengas com ponta, porretes, ou bordões, não indo de viagem por mandamento de seus senhores ou em companhia destes, os quais advertimos acautelem quanto lhes for possível em seus escravos o uso de semelhantes armas ofensivas, compreendendo nestas a de fogo, tanto por bem comum como pela própria utilidade de os não perderem, e o que for achado com semelhantes armas será preso e castigado a nosso arbítrio."
"Toda a pessoa que possuir terras nos Arrabaldes e termo desta vila será obrigada a descortinar as estradas da sua demarcação (...) para que se evitem os insultos, que costumam fazer os pretos quilombolas, pena de que não o fazendo assim ser condenado pela primeira vez em seis mil reis e pela segunda na mesma pena, e trinta dias de cadeia".
Já dissemos que a constante repetição deste edital, com as mesmas ordens e penas, era indício de que não cessavam os motivos de sua aplicação. Por outro lado, o Senado da Câmara possuía muitos interesses na publicação de semelhantes posturas, e nas multas advindas de sua transgressão, pois "metade das condenações impostas contra os transgressores" do edital era "aplicada para as despesas deste Senado, e a outra parte para as Rendas." Em muitos documentos encontramos a fase de penúria por que passavam as rendas da Câmara à época do governo Cunha Menezes. E tal penúria muitas vezes era devida às obrigações que, autoritariamente, o governador impunha aos camaristas. Muitos gastos com as avultadas despesas militares, com as obras e festas grandiosas, eram pagos com as rendas da Câmara, o que provocou também indisposições do Senado com o governador.2
Esta é uma outra face da história das câmaras no mundo colonial, sua utilização como instrumento de coação nas mãos de vice-reis e capitães-generais, ou como órgãos executores de seus interesses. Sob a alegação de preservar o "bem público", os senadores tomavam medidas que atendiam exclusivamente às exigências particulares dos governadores. Em Minas, as câmaras comumente se recusavam a se transformarem em instrumentos passivos de interesses governamentais, muitas vezes assumindo reivindicações públicas consideradas contrárias a esses interesses. E desde a constituição das primeiras vilas e comarcas, os senados das câmaras e os governadores se encontraram em muitas ocasiões em posição de enfrentamento.
Nunca é muito recordar, na história das resistências dos senados enquanto "cabeça do povo", o episódio em que todas as câmaras reunidas pressionam o governador D. Braz da Silveira a adotar a sugestão do sistema de "fintas", indo até mesmo contra uma decisão real a respeito. A vitória das câmaras, respaldada também por movimentos populares armados, garantiu que continuassem a gerir a cobrança por "fintas" em cada uma das comarcas. Ou ainda lembrar a atuação homogênea e unificada das câmaras de Minas contra as injustiças e arbitrariedades do imposto de capitação. Do outro lado, as reações dos governadores à autonomia alcançada pelas câmaras, em nome dos "povos", eram as mais diversas. Em carta de 1722 ao Rei, D. Lourenço de Almeida qualifica os senados de Minas como "oficinas de Vassalos inquietos, porque os que servem nas câmaras são declarados inimigos de Vossa Majestade". O mesmo governador chegou "a prender, e fazer depor toda a Câmara da Vila de São José. 3
Com a estabilidade do sistema de fundição após 1751, o principal motivo das queixas e representações das câmaras deixa de ser a discussão sobre a forma de cobrança do quinto. Principalmente a partir do governo Conde de Valadares, no nosso entendimento, elas passam a ter uma preocupação maior com a ordenação da sociedade, e com as contravenções de âmbito interno. Exceto quando das tentativas de imposição da derrama, quando as câmaras voltam de novo a expor a impossibilidade dos povos em arcar com as cobranças exigidas.
Todas os posicionamentos e representações das câmaras ao longo das Minas setecentistas não deixam de refletir o pensamento dos homens livres da capitania, que tinham uma compreensão bastante autêntica de sua realidade socioeconômica. Quando escrevem ao Visconde de Barbacena parabenizando-o pela suspensão da derrama, seis meses depois de comunicados do fato, os camaristas de Vila Rica se mostram suficientemente ousados não só para criticar a questão das 100 arrobas, que "mais parece um desvario do que pensamento sério de cabeças bem organizadas", mas para propor inclusive o fim do quinto do ouro, então base do direito senhorial do Rei na capitania. Propõem como compensação o aumento em outros tipos de impostos, que penalizariam mais aqueles, "cujas riquezas, por incompreensíveis a toda estimação, ainda aproximada, só admitem uma insignificante multa". Tratavam especificamente do "Corpo dos negociantes, (...) que envolvem como comercio do País o extravio do ouro".
Ao atestar o "avultadíssimo e notório empenho desta Província no Comércio", a Câmara fala também da concomitante queda nas "entradas", o que reforça a tese de que Minas Gerais havia passado, em meados do século XVIII, de importador em abastecedor do mercado externo. Para isso, havia uma grande produção de gêneros de primeira necessidade. Mesmo porque, "os homens pela experiência do pouco proveito da mineração (...) vão pouco a pouco desamparando este penoso, e para os agentes, infrutífero exercício, ao qual substituem o da lavoura". A Câmara afirma que não há ouro "porque a terra se tem parado avara em possui-lo" chegando quase a ridicularizar a solução de penalizar mais os extravios, indagando: "Será tambem expediente o apartar com violência os homens de todo o outro emprego que não seja minerar?"
Sem mencionar explicitamente o movimento sedicioso recente, em razão do qual os inquéritos e prisões prosseguiam, os camaristas falam que a suspensão da derrama desfigurou "as traças excogitadas para iludir o plano existente," reforçando "o interesse Real, tão aniquilado em consequência da desordem, ignorância e pobreza dos Povos e maldade de alguns indivíduos". Mencionam ainda uma "gravíssima matéria", sobre a qual as câmaras receberam em conselho explanação do governador, "tão importante e embaraçada, que desconcerta e confunde a quem sobre ela tem de dar parecer".5 No contexto geral não fica claro se neste trecho estariam se referindo à suspensão da derrama ou ao próprio movimento da “Inconfidência".
Basílio de Brito, em sua denúncia, discutindo a disseminação das ideias sediciosas pela sociedade, vendo "falar tais cousas com esta liberdade", disse ao Visconde que parecia-lhe " impossível que (o governador) o não soubesse".6 Mais sutis, os camaristas pós-inconfidência, fazendo a média algo irônica usual, dizem no início da referida carta que "seria ousadia e mesmo rusticidade supor, que escape a perspicácia, e agudo discernimento" do Visconde as circunstâncias e providências que estão propondo. Estas propostas, segundo os camaristas de Vila Rica, estariam "chamando a favor dos interesses da Coroa, e do bem comum desta Capitania, que - ressalvam - em certas relações marcham unidas".7 Esta ressalva é um singelo, mas inequívoco, exemplo da compreensão de que os "povos" revelavam possuir sobre as contradições entre o desenvolvimento socioeconômico da capitania e os interesses do sistema colonial português. E de que já se expressava claramente em nível político esta compreensão.
Sobre o autor
Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro.
1 Arquivo Público Mineiro, CMOP, cód. 112-A. As citações subsequentes são do mesmo edital.
2 Sobre o conflito entre a Câmara e o Governo em 1786, esboçado por Gonzaga nas Cartas Chilenas, cartas 5a e 6a, ver VERSIANI, Carlos. “As Cartas Chilenas e as Festas de 1786 em Vila Rica: a história oculta sob os versos de Gonzaga”. In: Revista do IEB, vol. 38, 1995, pp.43-68.
3 Revista do Arquivo Público Mineiro, vol. I, 1896, p. 654. Episódio relatado pelo governador interino Martinho de Mendonça de Pina e Proença.
5 RAPM, vol. IV, 1899, p. 786.
6 ADIM, vol. I. Denúncia de Basílio de Brito.
7 RAPM, vol. IV, 1899.
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