Caio Boschi tem razão quando afirma que as irmandades em Minas precederam, enquanto instituições, a Igreja e o Estado.1 De fato, quando da ereção das primeiras vilas e da delimitação das paróquias, já havia nas Minas cerca de dez irmandades relativamente organizadas e autônomas. Embora estas associações religiosas necessitassem, para se constituírem oficialmente, da aprovação régia dos seus compromissos, e de obedecerem à hierarquia estabelecida pelos cânones da Sé Católica, elas assumiriam em Minas um caráter muito mais laico e independente que as congêneres metropolitanas. Além de prestarem assistência material aos irmãos carentes e doentes, se encarregando também das despesas com os falecidos, eram responsáveis pela construção dos templos e pela organização de festividades no culto dos seus oragos. Teixeira Salles informa que:
[...] cada irmandade era proprietária, com direitos civis reconhecidos, das igrejas ou capelas que construía, do cemitério onde eram sepultados seus irmãos falecidos; animais de sela, imagens, utensílios e mobiliários de seus respectivos templos, e dos seus escravos, quando os possuía. Tratava-se, portanto, de uma propriedade coletiva.2
Não se pode pensar, entretanto, que tal autonomia significasse uma dádiva da Coroa, ou mesmo uma ardorosa conquista dos colonos e colonizados das Minas. O Estado Português nunca gastou muito com a construção e reforma de templos na colônia. Tal iniciativa sempre esteve a cargo das congregações religiosas regulares. Em Minas, como estas foram inicialmente prescritas e impedidas de instalar suas sedes missionárias, coube às irmandades a administração da vida religiosa. Era mais que sublime, seguro e econômico para a Coroa a iniciativa dos povos de erigir seus templos, cultuar seus santos e realizar suas festas religiosas. Ao Estado, caberia recolher os dízimos. Rigorosamente em dia. E vigiar para que o direito “sagrado” às terras conquistadas não fosse contestado.
Dissecando mais a estrutura eclesiástica das Minas, temos que até 1748, quando foi inaugurado o Bispado de Mariana, a capitania estava oficialmente subordinada ao Bispado do Rio de Janeiro. Cada comarca da capitania tinha como correspondente uma "comarca eclesiástica", sob a responsabilidade de um "vigário da vara". As comarcas eclesiásticas, por sua vez, se subdividiam nas vilas em paróquias, que quando criadas por ordem régia eram chamadas "coladas", e administradas pelos "vigários colados", ou "curas". Os vigários da vara e colados recebiam seus pagamentos, ou côngruas, do Estado, através dos dízimos recolhidos e administrados pela Coroa, pelo padroado da Ordem de Cristo. Já os padres ligados às capelas pertencentes às irmandades eram pagos pelas mesmas. A remuneração do clero vinha ainda dos casamentos, batismos, sepultamentos, acompanhamentos, encomendações, missas (cantadas, rezadas, festivas ou fúnebres), além das taxas de conhecença (confissão) e de estola (pé de altar).3
Aos vigários da vara cabia fiscalizar as normas do direito eclesiástico, dar sentenças e tirar devassas, encaminhadas à instância do Bispado. Mas a justiça eclesiástica sempre encontrava pela frente, em seus processos, o limite do direito do Estado, a quem estava submetida. E era quase certa a derrota, tanto dos vigários colados quanto os da vara, quando se tratava de disputas com as autoridades laicas da colônia. Também em relação às irmandades, cuja prática no interior das capelas nem sempre correspondia às normas paroquias, o alto clero via sua atuação limitada. As contendas geralmente diziam respeito à não submissão dos senados e irmandades às ordens e normas de autoridades eclesiásticas (vigários paroquiais, da vara e bispos), , quando da execução de solenidades e festas religiosas.
Em 1719, ao exigir petição para festas patrocinadas pelo Senado, o vigário da vara de S. J. Del Rei recebeu como resposta que "os senados só costumam fazer petição a S. Majestade, como a seu único Rei e Senhor", e acabou advertido, por ordem régia, pelo Bispo do Rio.4 Em outro exemplo, de 1788, temos o processo contra a Irmandade de N. S. do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, de Vila Rica, processada por não permitir que os párocos presidissem os atos religiosos na capela da irmandade, mas somente os juízes e o capelão da mesma. O procurador da Coroa, Gregório Pires Bandeira, dá ganho de causa à irmandade.5 Mesmo os bispos visitadores, que antes da instalação do Bispado de Mariana vinham tirar devassas na capitania, também não encontravam muito sucesso nas repreensões aos irmãos e aos capelães que atuavam no interior das capelas.
Esta relativa independência das irmandades contribuiu para que a religiosidade na colônia, particularmente em Minas, diferentemente da metrópole, tivesse um caráter essencialmente popular. Sabe-se que a maioria das irmandades do século XVIII eram de negros e pardos, e que as primeiras a se organizarem na capitania (excetuando as dos Santíssimos Sacramentos, paroquiais, que agrupavam a elite branca) eram de pretos escravizados, com devoção à Nossa Senhora do Rosário.6 Por vezes, era admitida nestas a presença de brancos, a quem geralmente cabia tarefas contábeis e escrivãs. As práticas religiosas nas irmandades de pretos, porém, tinham muitas particularidades em relação às irmandades de brancos. Porque não era mesma a cultura, a mesma estrutura e tampouco os mesmos objetivos.
Fala-se muito de sincretismo religioso, mas pouco se sabe de como se processou na mentalidade dos negros a origem deste chamado sincretismo. Certamente não possuía nenhum sentido “folclórico” as eleições para Rei e Rainha no interior das capelas, e a prática das danças do Reisado ou Congado. Uma mostra de como se dava na mentalidade dos negros a fé em Nossa Senhora do Rosário é a dedicatória que os irmãos pretos fazem à santa na abertura do texto do "Triumpho Eucharistico", em que se transladou o Santíssimo, da Igreja de Nossa Senhora do Rosário à reformada Matriz do Pilar, em 1733. Entre todas as alocuções que precedem a descrição de Ferreira Machado, a dedicatória dos negros é a única que não faz qualquer menção à Coroa Portuguesa, sendo que a monarquia lusitana foi o tema principal de todas as outras introduções, em meio a largos e exaltados agradecimentos e elogios.
A dedicatória dos negros (documento sumamente importante, pela raridade de registros escritos de pretos escravizados), exalta única e exclusivamente a Nossa Senhora do Rosário. Mas o tratamento dado àquela que consideram fielmente sua protetora é o de "Rainha", "Soberana", "Majestade".8 Abre-se, nesta fervorosa dedicatória, um flanco ainda pouco explorado do culto e da religiosidade nas irmandades de pretos. De como se verificava realmente o tal sincretismo e quais eram as associações que se produziam no imaginário dos pretos, entre N. S. do Rosário, a monarquia portuguesa, o reinado das nações africanas e as festas, ocasiões em que podiam livre e publicamente exibir suas tradições e seus dotes artísticos/musicais.
A respeito dessas associações, merecem atenção as descobertas que restauradores ouropretanos fizeram no forro das paredes da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos do Alto da Cruz, em Ouro Preto. Ali foram descobertas iconografias que o pesquisador Lázaro Francisco da Silva supôs serem temas religiosos de Ifá, o "Orixá da Adivinhação e da Gestação entre os negros de cultura iorubana". O papa negro, pintado no forro da capela-mor, mesmo que travestido por insígnias do pontífice romano, seria o "sumo sacerdote de Ifá". Búzios, falos, e tartarugas nos altares laterais completam a iconografia que teria sido recuperada pelos pretos da sua religiosidade original africana. Segundo o pesquisador, agora começaria a fazer sentido a letra I, solitária, sob um cacho de flores ou frutos, que fica em frente ao monograma cristão IHS da capela-mor. Talvez seja o monograma do nome de Ifá, "[...] entidade do Rosário de Ifé, compartilhando o mesmo espaço com a Virgem do Rosário católico".9
A partir de 1750, pouco depois da criação do Bispado de Mariana, são instaladas em Minas as Ordens terceiras do Carmo e de São Francisco de Assis, que possuíam, perante a Sé Católica, precedência hierárquica frente às confrarias e irmandades. Tal precedência pode ser visualizada na discriminação social presente nos compromissos, principalmente quanto ao processo de aquisição do hábito de irmão. Para conseguir o hábito da ordem franciscana, o pretendente deveria responder a um vasto inquérito, que incluía saber "[...] se é branco legítimo, sem fama ou rumor de judeu, Mouro, ou mulato, carijó ou de outra infecta nação..."; se "[...] é de boa vida, e costumes, ou se é constituído em alguns vícios de lascívia..."; se se "[...] ocupa em algum ofício de Meirinho, ou tem corte de carne, e exercita o matar, esfolar e pesar ao povo".10 Como vemos, a Ordem de São Francisco, composta na maior parte por comerciantes ricos,11 nada conservava da simplicidade daquela fundada na Idade Média, mas também desprezava os fiscais diretamente responsáveis pelo recolhimento dos impostos régios, que eram os conhecidos meirinhos.
Mais próximos dos ideais franciscanos estariam os misteriosos padres barbônios, que desde a década de 1730 percorriam as Minas, e que "conversos em comunidade", usavam "de roupas compridas pardas e barbas grandes". Mas o ouvidor Caetano Furtado de Mendonça, em 1742, representou contra eles ao rei, conjecturando tratar-se "de homens estragados com dívidas e perdidos, valendo-se da capa de religião para assim passarem melhor e sem perseguições dos credores". O Rei aprovou o não consentimento do ouvidor para que se abrigassem em um convento que haviam construído. Também temos o caso dos "Irmãos de Caridade e filhos da Divina Providência" de Vila Rica, que tinham ali estabelecido "um hospício" e recolhiam esmolas. O Rei Dom José ordenou ao governador, em 1755, que procedesse "na forma da lei" contra os mesmos.12
Por outro lado, a construção dos templos mais suntuosos tem início com a ascensão econômica das irmandades e ordens na segunda metade do século, capitaneadas pela Igreja de N. Sra. do Carmo e de São Francisco Assis. Como bem percebeu Afonso Ávila, foi sob os "auspícios" dessa ascendência que "[...] se desenvolveu a indústria da construção e a expansão profissional dos ofícios e artesanatos a ela ligados."13 No desenvolvimento plástico e arquitetônico dos templos na segunda metade do século XVIII encontramos uma nova relação religiosa, econômica e artística do trabalho profissional das corporações de ofício. Relação esta que vai gerar uma concepção estética do Barroco menos pesada e exógena, e mais acentuadamente regional.
Não sabemos que houvesse alguma agitação no interior das várias irmandades em termos de desafio explícito à Coroa ou ao sistema colonial. As contendas, como vimos, aconteciam sempre quando era contestada a autonomia das Irmandades dentro das capelas, na promoção de festas, obras, ou em alguma outra função pública. Mas as declarações do Ministro dos Domínios Ultramarinos, Martinho de Mello e Castro, feitas em 1794 aos deputados da Mesa da Consciência e Ordens, em Portugal, nos deixam muito curiosos sobre envolvimentos possíveis das Irmandades ainda não explorados pela historiografia:
É muito para recear que todo o Brasil se acha inundado de Semelhantes Associações debaixo do titulo de Confrarias, e Irmandades, sem que se saiba o numero delas, nem os indivíduos de que cada uma se compõem, nem se todas ou a maior parte seguem o mesmo criminoso sistema das Minas Gerais. E sendo bem conhecidos os danos que tem resultado aos Estados a (existência ?) de muitas das ditas Associações eretas ao princípio debaixo do titulo de piedade, e devoção, e convertido depois em conventículos sediciosos, e origem de muitos e muito funestos acontecimentos.14
Ainda não pudemos confirmar, por outros documentos, a participação concreta das irmandades de Minas Gerais ou de Vila Rica em movimentos revoltosos, mas a fala do Ministro Martinho de Mello e Castro lança dúvidas e é um grande incentivo para novas pesquisas. Ainda mais que ele escreve apenas dois anos depois do julgamento imposto aos conjurados de Minas Gerais e no mesmo ano em que é reprimida no Rio de Janeiro, então sede do Vice-Reinado, a chamada Conjuração Carioca.
Mas se ainda não é possível atestar essa dimensão política revolucionária das irmandades que atuavam na capitania de Minas, é inegável o seu caráter autônomo e popular, notável principalmente nas festividades organizadas pelas irmandades dos pretos de Nossa Senhora do Rosário. Não obstante a condição de exploração e repressão do sistema escravista, a religião não era um fardo pesado e frio nas costas dos negros escravizados ou libertos. Todos os dias santos eram também dias de festa. E nas festas populares das irmandades dos pretos, rompiam-se hierarquias e caíam as barreiras entre o espiritual e o temporal. Nada é mais eloquente e substancioso para exemplificar isso que a descrição do viajante inglês Johan Pohl, feita já no início do século XIX, sobre a festa de N. S. do Rosário que ele presenciou em Vila Rica, no ano de 1821:
Essa noite de tumulto alcançou proporções incríveis. Várias hordas de negros desfilavam por todas as ruas desde as onze até o alvorecer, acompanhados pelo estrondo de tambores e os sons dos instrumentos descritos (flautas, parecidas às 'choromeleiras'). Sua gritaria e as contínuas descargas dos morteiros e fuzis aumentavam o ruído ensurdecedor. Em todas as casas haviam acendido fogueiras, cujas chamas ascendiam pelo ar (...) Mas algo mais tarde, quando se uniram aos negros hordas de mulatos e brancos, e se somaram à algazarra com seus gritos ;e o som dos instrumentos musicais europeus, tudo se fundiu em um caótico e indescritível pandemônio."[1]5
Carlos Versiani é nascido em Ouro Preto. Bacharel e licenciado em História pela UFOP, Mestre em História Social pela USP e Doutor em Estudos Literários pela UFMG. Tem vários artigos científicos e livros publicados, na área da História e da Literatura. É também autor, diretor e ator teatral, tendo já fundado duas companhias teatrais em Ouro Preto: Pano de Fundo e Cia. Peripécias de Teatro.
1 - BOSCHI, Caio César. Os Leigos e o Poder. São Paulo, Ed. Ática, 1986, p. 23.
2 - SALLES, Fritz Teixeira. Associações Religiosas do Ciclo do Ouro. BH, UFMG, 1963, p. 18. Quanto aos compromissos, às vezes levava-se décadas para a sua aprovação ou reprovação, o que não impedia que as irmandades continuassem se valendo por eles.
3 Ver sobre a estrutura da vida eclesiástica e das Irmandades em SALGADO, Graça. (Coord.)Fiscais e Meirinhos: a Administração no Brasil Colonial. Rio, Nova Fronteira; Brasília, INL, 1985, e SALLES, F. Teixeira. Ob. cit.
4 In: CINTRA, Sebastião de Oliveira.Efemérides de São João Del-Rei, vol I. 2 ed. , Belo Horizonte, Imprensa Oficial, 1982, p. 278.
5 Casa dos Contos. Arquivo Judiciário do Forum de Ouro Preto, Rolo 2056, vol. 303, Ano 1788.
6 Em todas as vilas acontecia assim. Eram criadas primeiro as irmandades do Santíssimo e de N. S. do Rosário dos Pretos. SALLES, F. Teixeira. Ob. cit.
8 MACHADO, Simão Ferreira. "Triumpho Eucharistico". In: RAPM, vol. IV, 1899.
9 SILVA, Lázaro Francisco da. "Conjuração Negra em Minas Gerais", Revista do IFAC, n. 2, dez/1995, pp. 68-78.
10 SALLES, J. Teixeira. Ob. cit., p. 53. Um irmão da Ordem do Carmo, proibido de usar o hábito pela justificativa de ser casado com mulher parda, argumenta que "com efeito está desquitado dela há mais de nove ou dez anos, e que nunca mais a viu nem com ela conversara, e assim que pedia que pelo amor de Deus o admitissem aos Santos exercícios desta venerável Ordem".
11 Nos compromissos da Irmandade estava escrito: "Toda a pessoa que houver de ser admitida a esta Santa Ordem terá bens de ofício, ou agencia de que se possa comodamente sustentar; E não as tendo não serão admitidos, exceto as pessoas que forem caixeiros de lojas de fazenda seca, ou molhados, porque estes, ainda que ao presente não tenham, contudo estão aptos para estabelecer negócio de que se possam sustentar, contanto, que neles concorram os mais requesitos". SALLES, ob. cit., p. 51.
12 - Documentos do AHU, in RAPM, vol. XXVI, p. 207 e 214.
13 - ÁVILA, Afonso (org). Resíduos Seiscentistas em Minas. BH, Centro de Estudos Mineiros, 1967.
14 - Apud BOSCHI, Caio César. Ob. cit. p. 28.
15 "La Fiesta de Efigenia, La Santa Negra", In: WULCHNER, Hans Joachin (comp.) Del Rio Grande del Plata. Buenos Aires, Ed. Sudamericana, 1976, p. 270. Apud AGUIAR, Marcos Magalhães de. "Vila Rica dos Confrades". Dissertação de Mestrado apresentada ao Depto. de História da FFLCH - USP. São Paulo, 1993, p. 287.
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