– Conheci um homem, em uma aldeia de Pindorama, que era realizado em si lendo entardeceres. Havia uma “pegada” ou “qualquer coisa” aristotélica nele, principalmente quando dizia que era completamente feliz, simplesmente por fazer o bem ao seu próximo, no desempenhar de sua função inusitada.
Particularmente, nunca imaginei que houvesse a possibilidade de existir um ofício como esse, que não se ocupa em ser rentável financeiramente – o retorno é apenas a satisfação de alguém, que acolhe a narrativa descritiva de cada pôr-do-sol, que desliza até esconder-se atrás de morros distantes.
Quantos entardeceres vimos sem poesia?
Por quantos apenas passamos, sem nos darmos conta ou importância?
O homem leu o seu ofício que não pedia segredos, estava lá desde sempre. Pus os meus olhos na mesma janela de onde ele via, escutando a sua narrativa como quem ouve uma prece. Dizia ele, como os que declamam poemas:
“– Mais uma vez a tarde se revela especial: o sol, depois de alguns dias nublados, reaparece e parece sorrir para nós por estar tão intenso. Sua luz beija a sala em que estamos; deixando-a radiante e em um tom levemente avermelhado. Mas que interessante! Um gavião acabou de riscar o espaço, bem diante de mim, sendo repelido por diversos passarinhos preocupados em defender suas proles. Quase no mesmo tempo em que uma manga caiu do pé, ao ser bicada por um sanhaço. Inúmeras rolinhas estão fazendo dos galhos de um cajazeiro antigo os seus poleirinhos. Elas estão enturmadas e usando os bicos para limparem as penas, aproveitando os últimos raios do entardecer. Ouça a composição da imagem: os bem-te-vis e sabiás, das copas mais altas dos jambeiros, gorjeiam intensamente, parecendo disputar com a cigarra que reapareceu depois de tanto tempo em silêncio, insistente agora em cantar na casca velha de alguma árvore centenária. É um céu belo, diante de nós: o azul está límpido, sem sinais de chuva. Há borrões e pinceladas de cor laranja espalhados por todos os cantos, e em cima e embaixo, principalmente onde o sol está mais exuberante, que é o instante em que está mais poético, enquanto se acomoda e se acolhe, escondendo-se atrás dos morros.
Lentamente vai deitando, até desaparecer.
Entretanto, ainda está claro; só nos resta agora oito minutos de luz, até a noite nos engolir por completo – sem dúvidas, é a parte mais linda do dia e da vida.
Os passarinhos estão com seus papinhos abarrotados de provisão. Começam então a se aquietarem de seus agitos. Um a um, vão se calando.
Algumas maritacas insistem em gorjear comendo coquinhos das palmeiras. Depois alçam voos juntas para além das torres de transmissão, desaparecendo no horizonte.
A luz vai silenciando sua cor e brilho. E a tarde vai sendo pouco a pouco esquecida.
Oito minutos se passam. Já não se há mais tarde.”
Uma senhora chamada Alice, cega desde os quatorze anos de idade, para quem o ledor lia aquele entardecer, e que para isso estava posicionada diante da janela aberta, não conseguia conter suas lágrimas em virtude da emoção que lhe afetara. Era como se ela conseguisse vislumbrar, com profundidade e clareza, cada detalhamento naquela narrativa. O encadear das palavras e frases, dando formas e vidas aos acontecimentos reais, povoaram o ser de riquezas imagéticas e efeitos ópticos imensuráveis.
Vi quando ela segurou agradecida a mão do ledor. Puxando-o para que a ouvisse, disse com suavidade:
– Obrigada. Por me emprestar os olhos.
Sobre o autor
Filho de pais surdos, o filósofo carioca Márcio Messias Belém se utiliza da crônica, do conto e mesmo da prosa para tratar de forma delicada e ao mesmo tempo descontraída de um tema que deveria ser mais discutido na sociedade, a inclusão.
Que lindo, parabéns!!
Que esse conhecimento chegue a outros horizontes.👏👏👏